“A mídia será 100% legal, no sentido jurídico dos direitos humanos e da paz, quando reconhecer e expressar que pessoas com deficiência são sujeitas de todos os direitos garantidos pela Constituição, e não de apenas alguns direitos”, destaca Claudia Werneck.
Por Marcus Tavares
Escola de Gente. Trata-se de uma OSCIP fundada por jornalistas e publicitários que acreditam que a área da comunicação ainda é muito pouco utilizada em prol da inclusão dos mais diversos grupos, especificamente dos portadores de necessidades especiais. O principal objetivo da instituição é transformar políticas públicas em políticas inclusivas para que todos os cidadãos – com ou sem deficiência – exerçam seus direitos.
Ao longo dos anos, a Escola de Gente (www.escoladegente.org.br) vem promovendo oficinas, encontros e debates, defendendo o que chama de Mídia Legal. Ao mesmo tempo, publica livros e manuais com o intuito de melhor formar e informar os profissionais da área da comunicação sobre políticas de inclusão.
À frente da OSCIP, está a jornalista Claudia Werneck. Autora de nove livros sobre inclusão para crianças e adultos, recomendados pela Unesco e pelo Unicef, Claudia é consultora do Banco Mundial na área da inclusão e também possui o título de Jornalista Amigo da Criança, concedido pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi).
Em entrevista ao site do Centro Internacional de Referência em Mídias para Crianças e Adolescentes (Rio Mídia), em abril de 2008, Claudia fez um balanço sobre a relação entre mídia, infância e sociedade inclusiva.
Acompanhe:
Rio Mídia – Como a senhora avalia a relação entre a mídia e a criança?
Claudia Werneck – É uma relação cada vez mais intensa, o que reforça a necessidade e a urgência de a mídia assumir sua função educadora a favor de uma sociedade inclusiva. Mídia para a infância não é, pela concepção da Escola de Gente, algo a ser desenvolvido apenas no âmbito do conteúdo, mas também no formato. É preciso, por exemplo, habituar a infância do Brasil com a estética e a ética de uma sociedade inclusiva que prevê a presença do closed caption e da Língua Brasileira de Sinais nas telas. No que se refere à cultura, as crianças e os adolescentes devem crescer percebendo como natural espetáculos teatrais com audio-descrição e programas em braile para pessoas cegas, bem como livros que também sejam falados para quem não enxerga e/ou não é alfabetizado. A Escola de Gente entende que a relação mídia, sociedade inclusiva e infância enfrenta um processo de transformação, lamentavelmente, ainda bem lento.
Rio Mídia – Para a Escola de Gente, o que seria a Mídia legal?
Claudia Werneck – Uma mídia que não discrimina em função de diversidades e desigualdades. Que não releva as limitações, mas as ratifica e as percebe como a chave que abre possibilidades e modos de construirmos coletivamente uma sociedade inclusiva. É uma mídia que não coloca pessoas com deficiência como vítimas e entende que elas também não são, obrigatoriamente, heroínas. Pessoas com deficiência não precisam provar nada a ninguém. A mídia se torna mais legal quando intui que as grandes pautas sobre deficiência são justamente aquelas nas quais pessoas com deficiência falam dos livros que estão lendo, de uma questão que enfrentaram como consumidoras, de política, de economia, de acesso à cultura, enfim, se posicionam como cidadãos e cidadãs que vivem no mesmo mundo que o jornalista vive. Não fazem parte de um mundo à parte, de seres humanos que representam um “equívoco” da natureza e, por isso, merecem sempre pautas especiais. A mídia será 100% legal, no sentido jurídico dos direitos humanos e da paz, quando reconhecer e expressar que pessoas com deficiência são sujeitas de todos os direitos garantidos pela Constituição, e não de apenas alguns direitos.
Rio Mídia – Enquanto a mídia não é 100% legal o que ocorre?
Claudia Werneck – A deficiência costuma gerar um tipo de emoção que impede o jornalista de manter a lucidez defendida no exercício diário da profissão. Toda notícia sobre deficiência parece ser entendida como uma superpauta, o que nem sempre é verdade. Além disso tudo, no afã de não discriminar, muitos profissionais da imprensa superestimam as pessoas com deficiência. O tema deficiência deve ser transversal a outras pautas de direitos humanos, educação, cultura, lazer, esporte etc. Perceber pessoas com deficiência como indivíduos que trabalham e atuam em diferentes grupos sociais coloca-os no mesmo patamar.
Rio Mídia – Os encontros, promovidos pela Escola de Gente, têm o objetivo de defender esta Mídia legal?
Claudia Werneck – Tanto os encontros quanto os Manuais da Mídia Legal foram criados para dar consistência a dois princípios que a Escola de Gente defende desde sua criação: a atuação de uma mídia que assuma seu papel de agente de transformação social e a construção de uma aliança estratégica entre as áreas de comunicação e direito, daí o nome Mídia Legal. A questão é que os profissionais da mídia conhecem muito pouco a legislação brasileira que garante práticas inclusivas e abertas à diversidade e, por essa razão, raramente se beneficiam dessa legislação em suas matérias e investigações. Nossa proposta é disseminar conceitos e levar os profissionais a refletirem sobre formas sutis de discriminação que não são assim facilmente percebidas. E, principalmente, formar uma nova geração de profissionais de comunicação, de direito e de ciências sociais com essa mentalidade. Os assuntos escolhidos para os debates temáticos do Mídia Legal – ligados aos direitos da infância brasileira – já denotam a necessidade de que a visão inclusiva permeie todos os setores sociais. No documento Por um sistema público de comunicação, o Intervozes (Coletivo Brasil de Comunicação Social), parceiro da Escola de Gente no Mídia Legal desde 2005, define como deveria ser pautada a grande mídia. Segundo o Intervozes, a mídia “deve responder à demanda da população por informação plural e diversa e garantir a representação da pluralidade e diversidade cultural brasileiras”.
Rio Mídia – A senhora acredita que a sociedade já percebe a Mídia legal como um direito?
Claudia Werneck – Em outubro de 2005, a sociedade civil e o Ministério Público Federal se levantaram contra a Rede TV!, uma vez que a emissora, de forma homofóbica, estava violando os direitos humanos no programa “Tarde Quente”, de João Kleber. Fez-se uma ação civil pública pedindo a cassação da emissora, a suspensão do programa, direito de resposta e indenização por dano moral coletivo. Esse foi e continua sendo um dos cases discutidos durante o Mídia Legal. Um exemplo de que a sociedade, pelo menos em parte, entende que os meios de comunicação devem promover o respeito aos direitos humanos e à dignidade do cidadão. E isso, sim, é um direito, e não um favor que foi concedido por parte das emissoras.
Rio Mídia – O que as crianças querem da mídia?
Claudia Werneck – Acreditamos que as crianças e os jovens busquem nos veículos de comunicação formação, diversão e entretenimento. Mas, garantir o exercício de direitos humanos, principalmente quando estes se referem à infância, exige estudo e conhecimento de princípios por profissionais da mídia que lidam direta e indiretamente com a infância. Só que estes conteúdos devem ser oferecidos com base nos princípios de universalidade, inalienabilidade, indivisibilidade, interdependência e participação, apoiados na convicção do caráter público de todo ser humano desde o primeiro momento de sua existência. Quando falamos de ser humano, falamos de todo e qualquer ser humano, não importa de que forma ande, enxergue ou ouça.