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A infância sob fogo cruzado

Por Flávio Paiva

Depois do suicídio do mito do neoliberalismo em 2008, fenômeno que ficou conhecido como crise econômica mundial, as corporações intensificaram a instrumentalização do assédio às crianças na guerra pela sobrevivência do consumismo. A sociedade ora aceita e ora rejeita a intrusão, numa incômoda dificuldade de encontrar vínculos entre a cultura da infância e o cotidiano. Nesse contexto, a articulação de temáticas em torno da necessidade de “honrar a infância” tornou extremamente oportuna a realização do 3º Fórum Internacional Criança e Consumo, promovido pelo Instituto Alana, no Itaú Cultural, em São Paulo, nos dias 16, 17 e 18 passados.

Além do debate sobre a infância e as mediações mercadológicas que determinam a vida social, foram registradas várias notícias boas e ruins ocorridas recentemente nesse processo. A mais inquietante de todas foi relatada por Susan Linn, diretora da Campaign Commercial-Free Childhood (CCFC). A plateia ouviu espantada o caso da expulsão, pela universidade de Harvard, do núcleo dessa campanha em favor de crianças livres de comerciais, que funcionava há dez anos no Centro Infantil Judge Baker (JBCC), dedicado a assuntos relativos à saúde mental das crianças. O motivo? No ano passado a CCFC mobilizou as famílias e a mídia para que a Disney reembolsasse os pais que haviam adquirido o DVD Baby Einstein, enganados com a propaganda de que esse vídeo acelera a inteligência dos bebês.

A Disney foi obrigada a pagar cerca de dez milhões de dólares em devoluções aos consumidores e deu o troco “convencendo” à famosa Harvard a se livrar do “incômodo” grupo de defesa da infância que usava suas instalações e com o qual mantinha vínculo institucional. O lado bom desse caso é constatar que enquanto um muro separa, uma ponte une, pois o CCFC conseguiu acolhimento em uma instituição da sociedade civil que promove a democracia e a justiça social na Nova Inglaterra, região marcada por movimentos em favor dos direitos e liberdades civis, inclusive pela independência dos Estados Unidos.

No Brasil, dois fatos novos retratam a intervenção de espectros semelhantes ao que ajoelhou Harvard: 1) a inesperada mudança na relatoria do PL 5921/2001, que trata da regulamentação da publicidade dirigida à criança, no momento em que a matéria está sendo examinada pela Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados; e 2) o inexplicável recuo do compromisso da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) com relação à questão da publicidade de bebidas e alimentos não saudáveis para crianças. Não é a toa que muitos dos suspeitos do que tenho chamado de “pedofilia de mercado” engajaram-se em uma campanha tosca, intitulada “A publicidade da publicidade”, com a qual tentam confundir a população de que regulamentar a propaganda fere o direito de expressão.

A ofensiva é pesada e em alguns casos trabalhada com muita ardileza. Benjamin Barber que o diga. O autor do livro “Consumido” (Record, 2009), que participou do 3º Fórum Internacional, é um capitalista convicto. Em sua fala, o ex-assessor do presidente estadunidense Bill Clinton, que governou o país de 1993 a 2001, auge do neoliberalismo, defendeu que é preciso ter fé no capitalismo como o sistema triunfante. A criança entra no discurso de Barber pela porta do preconceito, quando ele diz que um dos excessos causados pelo mercado sem fronteiras foi a “infantilização” dos adultos. O termo, que também tem sido utilizado por alguns autores distraídos, é tão pejorativo para a infância quanto o uso da palavra “africanizar” para designar empobrecimento radical.

O sofisma de Benjamin Barber aborda, entretanto, pontos essenciais ao debate a respeito do consumismo. Ele já não se mostra a favor do “totalitarismo comercial” e admite que regulamentar é uma boa solução. Discorre com persuasão íntima sobre as consequências públicas de uma sociedade que aprendeu a se limitar às escolhas privadas. Mostra-se convencido de que ao abraçar igrejas, escolas e esferas públicas, o neoliberalismo deixou pais e mães sem aliados institucionais. Essa situação de isolamento familiar foi tratada por Frei Betto pelo viés da carência de espiritualidade na construção de uma subjetividade feliz. A fim de que não criem filhos desajustados pais e mães necessitam, segundo ele, estabelecer controles e referências para a criança, educando-a para que não ceda às pressões do consumismo.

Quanto à questão do capitalismo como sistema vencedor e único, Frei Betto coloca habilmente a tese de Benjamin Barber em dificuldades, ao dizer que esse sistema só conseguiu ser ótimo para um terço da humanidade, enquanto vitimou os dois terços restantes. Isso, óbvio, sem contar com a degradação ambiental que o consumismo provocou e vem provocando em todo o planeta. Betto previne a plateia para que fique atenta ao jogo de pontos de vista e lê as divertidas “notícias da Chapeuzinho Vermelho” que circulam na praça virtual da internet, numa alusão às diferentes formas como a mídia ressignifica um mesmo fato.
O ânimo dos presentes ganhou brilho de olho quando o Instituto Alana divulgou o resultado de uma pesquisa encomendada ao Datafolha, feita no mês de fevereiro passado, em São Paulo, que revela um significativo percentual de 73% de pais e mães entrevistados que não querem propaganda dirigida a seus filhos. “São 73% das pessoas que não vão gostar de ver uma marca se apresentando para seu filho para ser comprada por ele”, proclama Ana Lúcia Villela, presidente do Alana.

A própria realização do 3º Fórum é uma conquista relevante. A continuidade desse tipo de ação reforça as expectativas das pessoas que lutam por uma infância ativa na cena da produção simbólica e da dinâmica relacional. “O melhor que podemos fazer para ajudar nessa causa é não comprar, e falar para amigos e parentes não comprarem produtos que anunciam para nossas crianças”, desafia Ana Lúcia, em suas palavras de abertura. Este insight da educadora me faz lembrar a saudosa médica Zilda Arns (1934 – 2010) e a descoberta do soro caseiro e da importância da amamentação, como plataforma da Pastoral da Criança.

O Projeto Criança e Consumo, um dos quatro eixos de atuação do Instituto Alana, embora seja o mais conhecido, ainda está timidamente preso a uma redoma acadêmica, mas tem um potencial enorme de chegar a níveis de mobilização bem próximos àqueles alcançados pela Pastoral da Criança. Para isso, conta com uma base sólida de experienciação que vem desde 1994, com a criação do Espaço Alana e do Centro de Formação Alana, ambos de educação e cultura, no Jardim Pantanal, periferia de São Paulo, onde a informação publicitária não interfere nas brincadeiras e trocas criativas.

E o Alana acaba de abrir uma nova frente animadora, que é o apoio financeiro e de gestão ao Instituto Brincante, na Vila Madalena. O Brincante é um equipamento cultural de exercício da brasilidade “na prática, na teoria e na brincadeira”, criado em 1992 por Antônio Nóbrega e Rosane Almeida. Da sua diretoria participam pessoas de reconhecido trabalho pelo enriquecimento da condição humana, como a educadora Peo (Maria Amélia Pereira). Peo fez a exposição mais plena do 3º Fórum Internacional Criança e Consumo. Para uma plateia atenta, ela mostrou imagens e contou da sua experiência na Casa Redonda, em Carapicuíba, onde crianças praticam a iniciação do processo criador e do viver, na relação com a natureza e no livre exercício da linguagem do brincar. Ah, como é confortante saber do muito de bom que está sendo realizado, a despeito da perversão dos lobbies de atração comercial por crianças.

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