Por Gizelle Kaminski Corso
Professora substituta do Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em literatura pela mesma instituição.
O aparecimento de uma literatura para leitores infantis e juvenis ocorre mais precisamente por volta do século XVIII, quando, aliado à burguesia (nova noção de família, centrada em um núcleo unicelular), vem à tona o conceito de “infância” e, consequentemente, o de criança. A burguesia separou a infância da idade adulta, vendo aquela como uma faixa etária diferenciada, com interesses próprios e formação específica. Os primeiros textos para crianças foram produzidos por pedagogos e professores, com marcante teor educativo – daí é que vem a associação da literatura infanto-juvenil com a escola e com a pedagogia, e a justificativa de alguns livros para crianças em circulação no Brasil, no início do século XIX, confundirem-se com obras didáticas.
Apesar de a origem desses textos ter acontecido por motivos pedagógicos, e não literários, a literatura infanto-juvenil originou alguns tipos de textos exclusivamente seus, como a história de animais ou como os contos de fadas.
É de adaptações de textos clássicos e de contos de fadas que provém e se fortalece a literatura para jovens leitores. Compilados pelo francês Charles Perrault, no século XVII, adaptando-os de narrativas populares e revestindo-as de valores da burguesia, e pelos famosos alemães Jacob e Wilhelm, conhecidos irmãos Grimm, no século XIX, os contos de fadas não foram escritos especialmente para as crianças bem como não faziam parte da educação burguesa. Esses contos, anônimos e, portanto, recolhidos do seio do povo – do folclore popular –, eram ligados às camadas inferiores e estabeleciam conexões entre a situação social e a condição servil. Assim, por meio desses materiais preexistentes, como os clássicos e os contos de fadas, essa literatura começou a constituir o seu acervo. Por possuírem um conteúdo onírico latente e abrigarem a presença do elemento mágico, que auxilia os personagens a vencerem dificuldades, por exemplo, os contos de fadas se mostraram mais apropriados aos leitores mirins. Dessa forma, o folclore europeu foi sendo constituído por narrativas de transmissão oral, cujo sucesso fez com que migrassem para diferentes partes do mundo.
No Brasil, desde o final do século XIX, havia preocupação de fazer com que os leitores tivessem acesso e, possivelmente, maior entusiasmo com a leitura de textos. Além disso, era possível perceber que o país carecia de uma literatura própria para leitores ainda em fase de escolarização, pois até então circulavam aqui, na sua maioria, traduções de livros europeus. Era necessário repensar essa questão e procurar alguma alternativa para fazer com que esses leitores ingressassem na leitura de clássicos por outra via que não apenas a da tradução do texto integral; daí uma das razões para que se viabilizasse o aparecimento das adaptações.
Assim, com o intuito de se estabelecer uma comunicação com o leitor infantil é que se deu o aparecimento das primeiras traduções e adaptações dos contos de Charles Perrault, dos irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen no Brasil.
Era muito forte, no Brasil desse período, o anseio de nacionalizar a produção literária para crianças e jovens, pois era marcante a influência de traduções e adaptações de autores portugueses; por isso, o editor Quaresma encomendou a Alberto Figueiredo Pimentel (1869-1914) uma biblioteca destinada aos pequenos leitores. Assim, o jornalista, diplomata e escritor Pimentel e o professor do Colégio Pedro II, Carlos Jansen (1829-1889) são vistos como os primeiros tradutores/adaptadores de obras clássicas europeias. São do primeiro os Contos de fadas (1896), tradução de Perrault, Grimm e Andersen, Contos da Carochinha (1894), Histórias da avozinha (1896) e Histórias da Baratinha (1896), os quais apontavam para a moralidade e o sentido educativo; e do segundo, Robinson Crusoé (1883), de Daniel Defoe (prefácio de Sílvio Romero); As viagens de Gulliver (1888), de Jonathan Swift (prefácio de Rui Barbosa); Dom Quixote de la Mancha (1901), de Cervantes; As mil e uma noites (1882) (seleção e prefácio de Machado de Assis); As aventuras do barão de Münchhausen (1891), contadas por Erich Kästner, G. A. Burger e outros. É interessante notar que alguns títulos de Jansen foram prefaciados por figuras importantes do meio intelectual da época, como: Sílvio Romero, Machado de Assis e Rui Barbosa. Dessa forma, Jansen intentava lograr para suas adaptações (e para si) maior credibilidade ao ter prefácios assinados por esses escritores.
Embora apelativas à moralidade, “ galegais”, “ literaturizadas”, como afirmava Monteiro Lobato, as primeiras adaptações-traduções de Carlos Jansen e Figueiredo Pimentel foram o pontapé inicial para que os leitores jovens brasileiros do final do século XIX começassem a desfrutar da leitura desse tipo de textos. Apesar de essa fase de formação da literatura para o público mirim ainda se dar sob a égide do Romantismo – o que poderia instaurar aspirações nativistas do movimento, o desejo de uma marca própria, da cor local –, não o correu entre nós o aproveitamento da tradição folclórica para a constituição de textos para jovens leitores, como o fizeram os alemães, os irmãos Grimm, e os franceses, na pessoa de Charles Perrault. Assim, no Brasil, por muito tempo ocorreu a transmissão da literatura de tradição estrangeira e apenas com Monteiro Lobato esse quadro seria alterado. Foi ele quem procurou trazer para o acervo literário do leitor, via aproveitamento, personagens folclóricas, como o Saci Pererê, e relatos populares. Lobato inovou também porque construiu uma realidade ficcional coincidente com a do leitor de seu tempo, o que ocorreu com a criação do Sítio do Pica-Pau Amarelo, ao colocar crianças na condição de heróis, o que possibilitava a identificação imediata com o leitor daquele tempo.
Além disso, foi um obstinado partidário das adaptações; procurou recriar e reescrever uma série de textos que marcaram sua infância – Dom Quixote, Peter Pan, Pinóquio, Robinson Crusoé, Alice no país das maravilhas, para citar alguns –, pois considerava o conhecimento deles essencial para as novas gerações.
A ideia de Lobato de dar início a uma literatura que “nos faltava”, pois o que havia de leitura disponível era de “uma pobreza e tão besta”, “moitas de amora do mato – espinhentas e impenetráveis”, nasceu dentro de casa, ao observar a forma como seus filhos ouviam atentamente as histórias que a mãe, Purezinha, contava. A esposa de Lobato, naqueles tempos, fazia o papel que posteriormente seria feito e ficcionalizado em Dona Benta Encerrabodes de Oliveira, a distinta narradora do Sítio. Então, era preciso que a leitura fluísse, que os códigos estéticos fossem renovados e que as narrativas fossem livres de enfeites literários. Nesse sentido, podemos perceber que as adaptações, para Lobato, deveriam ser diferentes, sem termos do “tempo da onça”, “em língua do Brasil de hoje”.
Quem não está sintonizado com o mercado editorial pode pensar que pós-Lobato não apareceram mais adaptações literárias de rigor e qualidade. Da mesma forma que cresce a produção e elaboração de obras ditas originais (inúmeros escritores, ilustradores), cresce também o número de adaptações e, aliado a isso, pesquisas e pesquisadores. Para demonstrar tal importância das adaptações, incluídas entre a literatura pensada para jovens leitores, ressalto que, nas premiações anuais da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), que ocorrem desde 1974, existem categorias para as adaptações literárias, que seriam: tradução/adaptação criança; tradução/adaptação jovem; tradução/adaptação informativo; tradução/adaptação reconto.
Embora as adaptações ainda dividam opiniões, sua importância e presença não podem ser ignoradas, porque elas são parte do acervo de leitura para jovens leitores. Mas, reconheço, concordando com a professora, escritora e ensaísta Nelly Novaes Coelho, em texto publicado no Jornal do Alfabetizador, em 1996, intitulado “O processo de adaptação literária como forma de produção de literatura infantil”, que esse processo deve ser desenvolvido com rigor, o que exige do adaptador um trabalho vigoroso em três níveis, a citar: nível da composição, da estrutura narrativa; nível da personagem e nível do discurso. Abarcando esses três níveis, o processo de adaptação atingirá uma recriação simplificadora da linguagem narrativa, suscetível de agradar ou estimular os jovens leitores.
Atento para um aspecto bastante pertinente, levantado por Linda Hutcheon quando diz que para experienciar uma adaptação como adaptação, é preciso reconhecê-la como adaptação. A recorrência nem sempre é imediata e as adaptações são assim reconhecidas em consonância com seus pares – fontes em que bebem. Segundo João Luís Ceccantini (1997), a cada adaptação bem realizada, independente do seu formato, nas várias linguagens, é grande o número de leitores que se volta para os textos que a precederam. No entanto, não podemos ver as adaptações apenas como caminho – ou como caminho certeiro, aposta exata, confirmação inquestionável de acesso – aos originais, porque pode acontecer de nunca se chegar ao “original” (tradução). Ou seja, pode acontecer de não se reconhecer uma adaptação como adaptação porque, pelo desconhecimento, considerá-la como um/o original.
Com estas reflexões, pretendo enfatizar que as adaptações literárias para jovens leitores, quando elaboradas com rigor e seriedade, são importantes e necessárias no processo de formação de leitores. Importantes por colocarem em circulação obras clássicas distanciadas dos leitores tanto em matéria de tempo quanto de convenções linguísticas e estéticas. Necessárias por contribuírem na formação de leitores também de textos clássicos. Importantes por defenderem/promoverem a circulação desses textos e, assim, manterem/preservarem certas referências culturais. Necessárias por servirem como um “ convite” a uma leitura do/mergulho no original – que muitas vezes pode ser a tradução. Importantes, principalmente, por tornarem a leitura diferente, menos densa, mais prazerosa, e, de acordo com as ideias de Lobato, sem “termos do tempo da onça” e “português de defunto”, mas uma leitura “ o dobro mais interessante”.
Texto publicado inicialmente no site ComCiência.