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À procura da paz

Por Marcus Tavares

Caros leitores da revistapontocom, todas as vezes que me vejo diante do terror de insegurança que vivemos em nossa cidade do Rio de Janeiro –  que tornou-se constante e banal – lembro da entrevista que a professora Vera Candau, do Departamento de Educação da PUC-Rio, me concedeu. Sim, a entrevista tem quatro anos. Mas ela é cada vez mais atual, pois a conversa fala exatamente de paz, de um sentimento e de um desejo comum a todos. Quem já leu certamente vai concordar comigo. Quem não leu, uma grande chance de refletir sobre o significado da paz, da violência e dos vários tipos de guerras urbanas que estamos acostumados a conviver.

Acompanhe:

Marcus Tavares – A senhora  afirma que falar de paz nos dias de hoje é uma questão complicada e difícil. Por quê?
Vera Candau –
Porque, embora seja uma aspiração profunda de toda a humanidade, a atual sociedade – tal como está configurada – desenvolve em todos nós uma dinâmica de agressividade, de ver o outro como inimigo, como competidor. O diferente é sempre o inimigo e você deve proteger-se dele. Para isso, precisa atacá-lo, discriminá-lo e se valer de atos violentos. A paz questiona esta lógica de olhar o outro como inimigo. Questiona a lógica da sociedade atual, a sua dinâmica cotidiana, onde todas as pessoas estão diariamente guerreando para sobreviver; é a lógica das relações internacionais, centrada no poder bélico e econômico, que passa por cima de todas as regras de convivência e de negociação. A paz questiona tanto as atividades marcadas pela agressividade, pela negação do outro, quanto a lógica que impera nas relações macrossociais e políticas – que teimam em querer resolver os problemas na base do militarismo e do poder econômico. Corremos o risco ou de negar a realidade ou de não reconhecer o sentido profundamente antropológico e político-social do anseio de paz, presente nos indivíduos e nos grupos sociais.

Marcus Tavares – Portanto, estamos cercados por vários tipos de guerras?
Vera Candau
– Exatamente. Vivemos aqui mesmo no Rio de Janeiro uma guerra cotidiana – violenta, forte e nada surda. E não é só isso. Também convivemos, por exemplo, com a guerra contra a fome, contra as doenças infecto-contagiosas, contra a miséria. Além destas, há também as guerras travadas no mundo microssocial de cada comunidade, de cada família, no âmbito das relações interpessoais, fruto de uma sociedade configurada pela lógica do mercado, do consumo, que estimula a competição e a agressividade entre as pessoas. Portanto, hoje, temos uma multiplicidade de guerras e estamos envolvidos em quase todas elas: seja a do Rio de Janeiro ou a vivenciada nas nossas relações familiares e profissionais. Guerras no nível micro e macro que temos que manejar, desvencilhar e trabalhar, continuamente.

Marcus Tavares – Face às guerras, a senhora defende uma paz, mas uma paz que não se traduza em ausência de conflito. Por quê?
Vera Candau
– Se nos colocarmos nesta perspectiva, estaremos idealizando a paz, pois o conflito é inerente à vida humana. Não há crescimento pessoal sem que tenhamos que passar por momentos de crise e de conflito. Também no plano social, o conflito é parte da dinâmica de relações e do confronto de interesses. Em uma sociedade pluralista, o reconhecimento da diferença, em suas diversas configurações, passa por processos de confronto social, sem os quais é impossível que o reconhecimento e a conquista de direitos se dêem. É preciso defender uma paz que enfrente os problemas pela via da negociação, do diálogo, do reconhecimento mútuo, da valorização da diferença. A paz que se deve construir não é aquela que vai negar os conflitos, as tensões, os grandes desafios, mas é a que aposta sempre na negociação. É possível, sim, enfrentar todos os conflitos por outra via, que não seja a da guerra. Não construiremos a paz se não nos desarmarmos das nossas armas materiais, mas também se não desarmarmos nossos espíritos, nossos sentimentos, tudo o que há em nós de negação do outro, de não-reconhecimento, de prepotência, de exclusão dos “diferentes”. É isso que chamo de educar para a paz.

Marcus Tavares – Educar para a paz seria uma nova atribuição da escola?
Vera Candau –
A educação sempre esteve impregnada por valores, mas este trabalho específico e explícito em Direitos Humanos, em especial o voltado para a paz, é recente sim. Começou a ser debatido e defendido amplamente do final dos anos 1980 para cá e, muitas vezes, de forma bastante tímida. Um trabalho necessário, desejável e, reconheço, difícil para as escolas.

Marcus Tavares – Por quê?
Vera Candau –
Primeiro pela problemática da própria realidade no plano internacional e local. E, por outro lado, porque os professores não estão preparados. Os cursos de formação de professores, como já afirmei, têm privilegiado outras dimensões da formação docente, os conteúdos que os professores devem ensinar – Matemática, Língua Portuguesa, Ciências etc. – com as metodologias específicas. O debate em torno da construção de atitudes, comportamentos e valores – orientados para a formação da cidadania e para a promoção de uma cultura da não-violência – em geral não está presente nestes cursos ou é muito frágil. Portanto, quando os professores chegam à sala de aula, mesmo querendo, não conseguem trabalhar com esses conceitos, valores e práticas, não sabem como atuar. Acho que, na verdade, falta uma política clara e forte nesta perspectiva de educar para a paz. Quando existem, são, em geral, atividades extracurriculares que acabam não interagindo com o currículo escolar. É preciso que o currículo escolar esteja continuamente dialogando com a sociedade, com suas inquietudes e problemas. É preciso que o currículo esteja, sim, voltado para a cidadania nas suas diversas dimensões.

Marcus Tavares – Se a educação para a paz deve fazer parte do currículo, a escola não deve esconder ou mascarar a realidade do mundo de hoje para as crianças e jovens. Certo?
Vera Candau –
Isso mesmo. As crianças e os adolescentes são partes desta mesma realidade. A realidade não está lá e eles aqui. Pelo contrário, eles assistem aos noticiários na TV. Muitas vezes são, inclusive, vítimas ou protagonistas de situações traumáticas. Eles não estão fora, estão dentro da problemática. Uma educação para a paz não pode ser um processo que leve, de alguma forma, a velar a realidade, a calar as diferentes vozes, particularmente as dos excluídos, a não enfrentar a desigualdade e a exclusão crescentes na nossa sociedade. A escola tem que olhar a realidade e trazê-la para a sala de aula. Deve ser capaz de analisá-la com os alunos, ser capaz de olhá-la de diferentes ângulos e de gerar um compromisso. Lembro-me do assalto ao ônibus 174, que aconteceu no Jardim Botânico, Zona Sul do Rio de Janeiro. Uma escola que fica perto do local resolveu trabalhar este trágico acontecimento com os alunos. Discutiram, analisaram o tema. Redigiram um manifesto e encaminharam ao Governador. E mais: criaram um curso pré-vestibular comunitário oferecido a pessoas das camadas populares, onde os professores seriam os próprios alunos. Foi o modo que encontraram de não ficarem passivos e de colaborarem na construção da cidadania. A escola não ficou apenas na indignação, nem na análise e no debate do tema. É preciso gerar compromissos. Temos que apostar nisso, por mais que nos sintamos impotentes e como se fôssemos formiguinhas.

Marcus Tavares – A senhora acha que a paz é tangível?
Vera Candau –
A paz é um processo. À medida que você conquista um determinado patamar, você amplia seu horizonte. Você descobre novas aspirações. A sociedade quer Justiça. Quando a sociedade conquista alguns aspectos nessa direção, o seu conceito de Justiça, a sua aspiração de Justiça, se dilata e surgem novas buscas. Com a paz acontece a mesma coisa. No momento, estamos em um patamar mínimo de aspiração à paz: não queremos guerra. Esse é o patamar mínimo. Essa é a aspiração de paz do momento. Aspiração que hoje adquire uma conotação muito concreta. De certa forma, pensávamos que no terceiro milênio, pelo menos no cenário internacional, depois das duas grandes guerras mundiais, a humanidade teria aprendido a lição de que a guerra não resolve os problemas. A gente achava que já tínhamos superado essa fase. A construção da paz tem avanços e retrocessos. Esse grito quase que universal por paz é, na verdade, um grande avanço, que se expressa por manifestações, passeatas de crianças, jovens e adultos. A paz é uma construção que precisa estar continuamente sendo trabalhada, pois dificilmente podemos dizer: “basta de paz”.

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