Por Graça Ramos
Escritora. Autora do Blog A pequena Leitora – Literatura Infantojuvenil
Texto publicado no blog e no caderno Prosa e Verso, de O GLOBO
Um dos mais esperados lançamentos a serem realizados durante o 17º Salão FNLIJ do Livro para Crianças e Jovens — que acontecerá entre os dias 10 e 21 de junho, no Centro de Convenções Sul América, no Rio — traz a assinatura de Bartolomeu Campos de Queirós, o consagrado autor que fascina tanto o público adulto como o infantojuvenil. Ilustrado por Mariana Newlands, “Dulce, a abelha” (Alfaguara Infantil) conta a história da pequena fêmea tão mélica quanto diabética.
“Em Dulce morava uma vida doce. Seus pensamentos eram suaves como se polvilhados com açúcar de confeiteiro. Também pudera, Dulce nasceu abelha. E abelha, como bem sabemos, tem como ofício fazer o mel”. Com suavidade, o narrador apresenta o mais novo integrante da fauna poética de Bartolomeu, que, simbolicamente, nasceu em Papagaios, Minas Gerais, em 1941.
Em seus livros já figuraram uma borboleta cujo voo “pode transformar qualquer dia em um domingo”, o pequeno elefante “neto do sono e filho do sonho”, o pato pacato, o pé de sapo e o mico-leão-dourado, o peixe e o passarinho, a formiga amiga, o piolho contraponto do repolho. E em “O gato”, que considero um dos mais belos textos de nossa literatura infantil, o bichano que ronrona filosofia. Dulce fala de doença e morte, limitações e solidariedade.
Inédita em português, a narrativa havia sido incluída, em 2011, na coletânea “Cuentos infantiles brasileños”, publicada pela Embaixada do Brasil na Costa Rica, organizada por Ninfa Parreiras e Glória Valladares Granjeiro. No ano seguinte, em meados de janeiro, o escritor morreu, vítima de insuficiência renal. No posfácio, Ninfa, amiga e estudiosa da obra, relembra: “Certo dia, Bartolomeu me segredou que gostaria de ver a história de Dulce em um livro ilustrado para crianças de todas as idades.”
Anseio materializado em bem-cuidada edição, com capa em brochura. As ilustrações de Mariana Newlands deram à protagonista aparência entre o divertido e o cândido, como se anjo-inseto fosse. Dulce evoca querubins barrocos. Cara gorducha, cabelos marrons encaracolados, olhos quase sempre semicerrados, ela habita a natureza exuberante.
— Todos os detalhes da ilustração ficam concentrados nas abelhas, onde o desenho é mais detalhado e com traços finos, enquanto que os cenários de fundo são amplos, borrados, com muitas cores vibrantes para as folhagens, as flores, a colmeia — explica a ilustradora.
Mariana usou aquarela e lápis de cor para fazer as abelhas, desenhadas separadamente e recortadas à mão, uma a uma. Para os cenários, tinta acrílica, colagens com papel, lápis de cor e pastel seco. Ao pensar em conjunto o trabalho de ilustração, a sequência das imagens e também o projeto gráfico, ela obteve articulado senso de unidade no passar das páginas.
Observo que a narrativa visual permite sutil ampliação do imaginário — a morte, por exemplo, é abordada sem alarde gráfico —, mas faço reparos ao tamanho do posfácio. O delicado texto de Ninfa Parreira elenca aspectos importantes da escritura de Bartolomeu, porém, quando o público-alvo são crianças, quatro páginas explicativas significam muito esforço para o leitor. O excesso no paratexto quebra a ambiência poética que, ao final, a narrativa reivindica.
De volta à biografia de Dulce, percebo ainda que, em ritmo de canção sussurrada, o narrador onisciente mostra-se observador atento da jovem abelha. Mulata vinda da África, que não gosta de samba nem de axé, ela aprecia “o som das asas cortando o vazio” e “o perfume macio escondido nos ventos”. Olhar amoroso que o leva a exclamar “Ah! Tenho medo de Dulce nunca mais voltar”.
Leio “Dulce” como se fosse a despedida do autor da lide literária, e também da vida. Há momentos em que o narrador confessa sentir muitas saudades da abelha, a quem gostaria de rever. Sentimento que, imagino, seja vivenciado por aqueles que sentem falta da inspiração de Bartolomeu, o dono dessa escrita do mundo regida por afetos lúcidos.
Não conheci o escritor, me sentia próxima dele por conta dos livros, em especial por identificar a sonoridade musical de uma infância remota. O homem para quem “todo real é uma fantasia que vem no corpo” também impregnava as narrativas com apelos aos sentidos. Em “Dulce”, imagens suscitam inúmeras acepções da palavra doce, revelando quão meiga, amável, suave, agradável e açucarada é a abelha.
O deslizar de associações lembra-me sintético poema de Bartolomeu estranhamente intitulado “Eu sei,” que diz: “de tanto amar a doçura/ a saliva da formiga,/ açucarou”. Como os sinônimos de doce são palavras não mencionadas, é o leitor que completa o perfil de Dulce, esse corpo-ser que delira com uma flor “diet”. Forma inusitada de o narrador invocar a razão.
Bartolomeu apreciava incluir dados do real no corpo de narrativas ficcionais. No livro em questão, estão inseridas informações sobre diabetes, a respeito da abelha-rainha, e relativas ao zangão, considerado pai alienado. Elementos apresentados de maneira macia, o que impede o texto de se tornar pesado, ou pior, aborrecido.
Embora a enfermidade crie dificuldades para Dulce fabricar mel como suas cinco mil irmãs, termos referentes ao cotidiano de trabalhadores são utilizados. Elas “não recebiam décimo terceiro nem tinham férias” e “a rainha, numa geleia real, exigia das filhas mais e mais trabalho e também muita cera”. Na dimensão política de suas narrativas, Bartolomeu não se furta a fornecer ao leitor, mesmo que criança, conceitos que possam induzir questionamentos. “Desobediência, preguiça ou subversão” são vocábulos que contextualizam o comportamento da protagonista, ainda que por negação. Afinal, “coisa que abelha não é, é contestadora”.
Bartolomeu sabia ser a infância momento fundamental em que se constroem noções que guiarão os adultos. “Dulce, a abelha” é mais um de seus atos por uma literatura feita, nas palavras dele, “com afeto, liberdade e fantasia”, capaz de propiciar o fortalecimento de singularidades.