Por Roger Tavares,
Pesquisador e professor universitário de Arte Tecnologia
Mantenedor do website Gamecultura, o game como forma de cultura
A atual discussão se jogos são cultura ou não se situa entre a comédia e a tragédia. De um lado a Ministra da Cultura do Brasil [Marta Suplicy] declara que alguns meios, como jogos e TV a cabo, não são cultura, e que revistas de quinta categoria são. Do outro lado, milhares de jogadores se sentem menosprezados porque consomem avidamente um produto que eles consideram cultural. No centro, instituições e associações querendo morder uma fatia dos 11 bilhões que devem ser injetados nesse mercado de consumo cultural com o Vale-Cultura. Mas, e a Cultura? Vai bem, obrigado? É possível pensar na Cultura sem esse mi-mi-mi todo, e procurar as razões pela quais nossa atual Ministra acha que jogos não pertencem a esse setor? Vamos, pelo menos, tentar?
Em dezembro de 2012, a presidente Dilma Rousseff sancionou o projeto do vale-cultura. A lei prevê que trabalhadores contratados em regime CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) que recebem até cinco salários mínimos (R$ 3.390 mil) vão poder receber um vale mensal de R$ 50 para gastar em eventos ou produtos culturais. O projeto, cujo texto da regulamentação está na Casa Civil, deverá começar no segundo semestre de 2013. A problemática entre games e cultura surgiu depois que a ministra, durante uma audiência na Assembleia Legislativa de São Paulo, no dia 19 de fevereiro deste ano, foi questionada pelo pesquisador e game designer Francisco Tupy sobre a inclusão de games no programa. “Eu não acho que jogos digitais sejam cultura”, respondeu a ministra.
A função deste texto não é então discutir se os jogos são cultura ou não, ainda mais porque defendo esse ponto de vista há 15 anos, em minhas aulas, meu mestrado e doutorado, e há oito anos em meu website, voltado exclusivamente para este assunto: jogos como uma das formas da cultura. Eu não tenho a menor dúvida que os jogos sejam não apenas cultura, mas uma das manifestações mais impressionantes da atual cultura humana, assim como foram séculos atrás a música, o teatro, a literatura, o cinema e tantas outras. Por isso eu escolhi trabalhar com jogos digitais, e não me arrependo mesmo em debates como este.A função desse texto é tentar entender porque uma pessoa capaz como um Ministro da Cultura não considera as formas contemporâneas de cultura dignas de investimento.
Iniciando pela figura pública da atual Ministra que vem sendo atacada como culpada, insensível e preconceituosa, entre outros. O seu currículo é de uma pessoa muito experiente: ex-ministra do Turismo, ex-prefeita de São Paulo, ex-apresentadora de televisão e ex-tantas coisas mais, incluindo, acredito, ex-sexóloga. Com esse currículo todo, não é possível desconhecer que TV a cabo ou jogos digitais são poderosos, e contemporâneos, disseminadores de cultura.
Mas os problemas do Vale-Cultura são tantos, que o que é considerado cultura ou não chega a ser irrelevante. Eu vou apresentar aqui apenas cinco deles, que considero os mais importantes neste momento do debate.
A questão do suporte e os tipos de cultura
I. Em primeiro lugar, nem livros, nem cinema, nem música, nada disso é Cultura. Esses são apenas alguns dos meios que podem ser usados, ou não, para se transmitir Cultura. Jogos digitais, óbvio, fazem parte desses meios. Não é possível separar ou qualificar a Cultura humana através dos suportes que as carregam. Eles são apenas isso: suportes. Cultura é o que sobra depois da sua experiência com esses suportes. É aquilo que muda alguma coisa em você. Se depois dessa experiência você se encontra do mesmo jeito, então foi um mero passatempo, você passou momentos bacanas, mas não conquistou cultura alguma.
Esse conceito de suporte, dele não ser a cultura em si, parece banal, mas é um grande problema, e um dos que está acontecendo neste momento, quando alguém, no caso um alguém que pode mudar o destino de uma nação, diz que livros são cultura e jogos não são. O suporte livros abrange desde as obras fundadoras do pensamento humano, até livros de contos eróticos auto elogiosos. O suporte jogo, ou especificamente o jogo digital ou game, vai de joguinhos bobos de explodir bolinhas (eu adoro!!!) até obras que mudaram a maneira do ser humano perceber o mundo, a Cultura e a si mesmo através dessa linguagem e tecnologia, como “Zelda”, “Myst” ou “Pac-Man”. Reforço o termo linguagem, pois embora os detratores dos videogames consigam enxergar apenas a sua tecnologia, esta é passageira, e o que sobra são as linguagens que ele consolida, como o Chiptunes, a Pixelart, e as narrativas não diegéticas. Em resumo: não é possível comparar, categorizar, ou justificar obras pelo seu suporte. Da mesma maneira que existem muitos jogos ruins, existem muitos livros, óperas e filmes igualmente ruins, ou piores.
II. É preciso também entender as diferenças entre Alta Cultura e Cultura Popular. A Alta Cultura representa os valores culturais considerados universais, inovadores, à frente de sua época, como as grandes sinfonias, o teatro de Shakespeare ou as tramas de Dostoiévski. Ninguém vai discordar do valor universal que essas obras têm para com a Cultura. Na verdade, o senso comum, e por vezes o elitismo superficial, costuma acreditar que apenas essas obras possam ser chamadas de “cultura”, e que por isso, a tal cultura normalmente é difícil e chata. Mas temos também o lado da Cultura Popular, como o artesanato, as manifestações folclóricas, músicas e comidas regionais que não tem esse valor universalizante, mas representam povos e comunidades em suas singularidades.
O problema começa a surgir quando adentramos o meio pantanoso da Cultura de Massas, aonde se encaixam os jogos digitais, séries televisivas, cinema hollywoodiano, música pop e outras manifestações igualmente importantes.
Os argumentos contra essa cultura são vários. Alguns as acusam de darem demasiada importância às emoções e sentimentos, assim como aos apelos de marketing para as massas, em detrimento da qualidade e da inovação. Um exemplo clássico são as minisséries televisivas baseadas em romances históricos, nas quais todo o conteúdo social e histórico vira um vago pano de fundo para as relações de amor e intriga entre as personagens. A partir desse ponto de vista, esta não poderia ser considerada Cultura porque em seu objetivo não se encontra o ser humano em si, e sim os lucros a partir de targets de mercado. Nesse escopo encontram-se muitos jogos e filmes, especialmente os “mais vendidos”, a maioria esmagadora construída em cima de franquias e propriedades intelectuais bem conhecidas. Mais do mesmo. Por outro lado, os argumentos a favor da Cultura de Massas, apontam a sua importância para a classe média, e que a Alta Cultura se estabelece como uma superioridade pomposa, e que nada garante que as pessoas que consomem esses produtos sejam mais ou menos cultas do que as que consomem os produtos representantes de outras culturas.
Aparentemente a senhora Ministra é uma dessas milhares de pessoas que não acredita que a Cultura de Massas possa ser considerada como Cultura, e no caso específico dos jogos, eu acredito que a culpa não seja dela. Mas de quem seria, então?
Jogos digitais não são bananas, laranjas, nem mesmo melancias
Independentemente do que se acha, ou deixa-se de achar dessa cultura intermediária, é certo que ela existe, e que é consumida por uma parcela considerável da classe média. O difícil nesse caso, e aí entra o terceiro problema dessa discussão do Vale-Cultura e os Games, que é confundir os produtos dessa cultura intermediária com produtos de entretenimento, como disse, com toda razão, a nossa ministra: “Isso é entretenimento”. E nesse ponto a ministra tem razão, e muita razão.
III. A embrionária indústria brasileira de jogos digitais, também quer morder um pedaço desse bolo de R$ 11 bilhões. O trabalhador pega o seu cartãozinho, vai na loja e pega um belo jogo de R$ 50 (sic!), ou talvez complete o valor com mais uns R$ 150 (?!?!?!) em algo que vai lhe proporcionar “horas de diversão”. Assim, na hora de alardear um jogo, a indústria diz que ele traz “horas de diversão”, “gráficos deslumbrantes”, e na hora de morder uma fatia do bolo do governo ele de repente vira Cultura? Se as pessoas ainda não sabem que jogos são Cultura, e “pessoas” envolve a senhora Ministra, então essa indústria tem uma parcela importante dessa culpa.
Ser divertido, ou ter uma certa quantidade de entretenimento, não exclui o potencial cultural de um produto desses. Potencial porque eventualmente o jogador pode parar na superfície divertida, e uma pessoa já conformada com essa superfície, não passa para as camadas de conteúdo diferenciadas, como inovação, tradição, qualidade, criatividade, crítica, conteúdo, etc. Na Cultura Popular pode-se pensar nas danças circulares, na Alta Cultura temos as óperas e o teatro, e na Cultura de Massas, filmes como os de Woody Allen ou o primeiro álbum do Led Zepellin, que mudou toda uma geração de roqueiros. Mas também, nada garante que os consumidores dessas culturas específicas também consigam acessar essas camadas de conteúdo. Para a Cultura se completar, não basta a fruição desta, deve haver também um certo esforço intelectual, o qual a internet tem facilitado bastante.
Outros meios são quase sempre divulgado como cultura, “Disco é Cultura” está escrito em alguns LPs aqui em casa. Os jogos, por sua vez, são divulgados como diversão, e de repente, eles começam a serem alardeados como cultura. Nesse caso, eu entendo perfeitamente a opinião da senhora Ministra, por mais preconceituosa que eu a considere. Ou seja: não adianta dizer que jogos “são cultura”, se a própria indústria que os faz não os mostra como bens culturais. Se os próprios jogadores que os consomem buscam esse entretenimento. Se quisermos que os jogos sejam entendidos como cultura, temos de falar e agir dessa maneira o ano todo, e não apenas em meio a editais, captação de recursos ou planos de governo. Os jogadores, por sua vez, têm de exigir mais conteúdo crítico em seus jogos, pois a indústria atende demandas deles. Eis o ovo e a galinha desse debate.
IV. Isso nos leva a um quarto ponto que diz respeito à pasta da Cultura. Não vou entrar aqui no mérito de nossos políticos, pois afinal fomos nós que os elegemos, e cada povo tem os representantes que merece. Mas existe um problema particular nessa pasta, que a diferencia um pouco das outras: a sensibilidade.
A pasta da Cultura não pode ser tratada apenas objetivamente, como uma quitanda que compra e vende bananas e laranjas. Cultura faz parte da formação de um povo, de uma nação, e em última instância, da humanidade. Ela não é comprada através de bens de consumo como televisão, livros ou CDs, que como já disse são apenas suportes. Cultura deve ser conquistada, e a ferramenta para isso é a Educação. Se o trabalhador quiser usar seus R$ 50 para comprar “revistas porcaria”, como disse a senhora Ministra, esse não é um problema dele, e sim um problema do país todo. Se alguém come laranja, banana ou melancia, aí sim o problema é dele. Mas se esse cidadão faz crescer uma indústria de revistas de quinta categoria, aí o problema me atinge também. Cultura não é um problema meramente administrativo, e nem pode ser solucionado com R$ 50, R$ 100, nem mil reais por mês. E resoluções como essas não podem ser tomadas por uma pessoa só, que aparentemente trata produtos culturais como um produto qualquer. É necessária uma comissão, pesquisas e estudos sobre o caso. Não apenas uma boa intenção, como a de movimentar um mercado.
V. Um quinto e último ponto, por agora, que esse sim eu considero o mais importante dessa questão toda é a criação do próprio Vale-Cultura. Eu, particularmente, não gosto dessa política de distribuição de dinheiro porque eu não acredito que essas políticas resolvam problema algum. O problema da Cultura, assim como a Educação, a Saúde, e outros, deve ser tratado na base, e não na ponta. Esses R$ 11 bilhões poderiam ser mais bem utilizados, digo mais uma vez, na minha humilde opinião, em outros programas de incentivo à cultura, na criação e divulgação de obras e espetáculos culturais, na criação de cargos apropriados, capacitação e condições melhores para agentes culturais, na criação de editais que prevejam atividades gratuitas, regulamentações diversas incluindo as open source e copyleft, ou até mesmo na renúncia fiscal de alguns impostos que incidam indiretamente sobre esses produtos, como importação de áudio digital, por exemplo. Existem tantas outras opções para utilizar esse dinheiro todo, que pessoas com muito mais propriedade do que eu podem sugerir, que eu fico realmente triste quando vejo um problema desses ser “resolvido” na forma de um mero cartão de alimentação. Quando se olha para o quadro da cultura no Brasil, e se “resolve” ele dando-se R$ 50 para cada trabalhador, recordo-me daquela piada infame na qual um criador de porcos cansado de levar multas da fiscalização sanitária, “resolve” o seu problema transferindo a sua responsabilidade para cada porco, ao dar-lhes vales refeições: “Agora cada porco almoça aonde quiser”, diz aliviado o pobre suinocultor, sem porco algum para cuidar.
Entretanto, embora eu não acredite no Vale-Cultura, mas como me parece ser um caminho sem volta, ele deve ser aberto a tudo que o beneficiado considera como cultura. Se cultura em sua base é o produto de criação do homem sobre a natureza, então livros, vídeos, fotos, calendários, jornais, gravuras, TV aberta e fechada, esculturas, pinturas, internet, cinema, ópera, e também os jogos e demais representantes da cultura digital não podem ficar de fora. No panorama complexo da Cultura Contemporânea, da pós-modernidade, das mídias digitais, das micronarrativas, da modernidade líquida, qualquer exclusão é pura censura.
____________________________
Artigo reproduzido do UOL jogos