O que o Ministério das Comunicações se nega a ver

Por Vânia Lúcia Quintão Carneiro
Professora da UNB

O Ministério das Comunicações (Minicom) encerrou 2009 sua investigação sobre a denúncia de infração aos direitos da criança ocorrida em dois programas (10 e 17 maio 2009) do apresentador de televisão Sílvio Santos, envolvendo a menina Maisa, apresentadora-mirim de seis anos. Alegou o Ministério em seu parecer que “o estresse físico e emocional apontado pelo Ministério Público Federal foi involuntário e a desenvoltura da menina no palco ao longo do programa demonstrou que ela não se sentiu ofendida nos diálogos com Sílvio Santos” [jornal O Dia, 06/10/2009; disponível aqui, acesso em 10 jun. 2009].

Contrapondo-se a essa afirmação do Ministério das Comunicações, apresento parte de outra versão [CARNEIRO, Vânia L Quintão. “Fazer rir … a que preço? Desrespeito e comercialização da liberdade infantil”. XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Curitiba, 2009], em que analiso como a produção do riso pode ocultar os constrangimentos a que a que menina Maisa foi exposta ao vivo, no programa dominical Sílvio Santos, voltado à diversão de adultos, durante o período em que o quadro “Pergunte a Maisa” esteve no ar (ago. 2008 a maio 2009).

Comédia grotesca

Vale ressaltar que esse quadro com a exposição da menina foi retirado do ar por violar os direitos da criança e o seu apresentador Sílvio Santos foi acusado pelos órgãos públicos – Ministério da Justiça, Ministério Público Federal, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e Juizado da Infância e da Juventude de Osasco – de exploração do trabalho infantil e de submeter a criança aos graves constrangimentos morais e públicos, como os ocorridos nos dias 10 e 17 de maio de 2009 que justificaram a abertura de Inquérito Civil Público pelo Ministério Púbico Federal [Portaria nº 72 de 19 maio 2009, instauração de Inquérito Civil Público (1.34.001.004212/2009-69), Ministério Público Federal, Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, disponível aqui, acesso em 10/06/2009].

Este artigo objetiva responder às indagações: por que estas situações constrangedoras e dolorosas para a criança conseguiram até mesmo provocar o riso? Como foram produzidas? Para responder a estas questões, analisei seis vídeos do programa, que circularam no YouTube durante a existência do quadro, incluindo tanto os que pareciam repercutir a imagem de uma menina inteligente que faz rir quanto esses dois últimos programas da menina que chora. Constatei, portanto, que os dois últimos programas simplesmente deram visibilidade à exploração da sua condição e liberdade infantil, ao tratamento de desrespeito aos seus direitos de criança, o que, de certo modo, já acontecera em programas anteriores.

Minha análise evidenciou que o mecanismo de produção do riso do qual a criança participava evocava brincadeiras infantis com bonecos de molas e de cordas sob a aparência das quais o apresentador Sílvio Santos habilmente transformava em “comédia/grotesco” qualquer situação real que a criança vivesse por mais dolorida que fosse. A seguir, apresento essa descrição analítica com relação a três vídeos dos dois últimos programas veiculados pela emissora SBT e pela internet.

“Sílvio Santos tranca Maisa dentro da mala” (10/maio/2009)

No programa do dia 10 de maio/2009, assim que três crianças bailarinas terminam a dança, Maisa se aproxima de uma mala que está aberta no meio do palco. Fica em pé dentro da mala, sem acreditar que a menina Pitu coubera nessa mala. Sílvio lhe pergunta se ela acha que alguém cabe na mala? Ela tenta deitar dentro da mala, estimulada pelo Sílvio que se aproxima e a desafia: “Quero ver você ai toda dentro da mala?” Receosa, Maisa pergunta: “Fechada?” E ele aproxima-se mais e ordena: “Entra na mala. Eu quero ver se vai conseguir”. Maisa, esperta, sai da mala e pede a uma das bailarinas para entrar. Sílvio Santos não deixa que a bailarina entre, e insiste com Maisa para que ela entre na mala como se fosse viajar com o pai e a mãe. Aproxima mais para ajudá-la a ficar completamente dentro da mala, e, de repente, sem aviso, tenta fechar a mala. Maisa se mexe incomodada e grita. Sílvio Santos, se divertindo como se tratasse de uma boneca de mola, aperta a parte superior da mala comprimindo-a para a menina não saltar, enquanto puxa o fecho para trancá-la. Irônico, comemora a “vitória” sobre a “boneca”: “Deixa ela aí que eu me livro dela, e nunca mais”. Maisa grita por socorro e

Sílvio Santos ignora seus gritos. Sorrindo, o dono do baú, investido do papel de dono também da “boneca”, vai empurrando a mala e a entrega para as meninas ordenando a estas que a despachem como uma mercadoria qualquer: “Pode levar, leva embora sua mala e ela também”.

Esta cena apavorante para a criança Maisa pode produzir o riso ao evocar o mecanismo da brincadeira conhecida por “caixa de surpresas”, que abriga um boneco de mola. Uma pessoa tenta tampar a caixa, mas o boneco teima, insiste em saltar fora. Quanto mais se aperta o boneco, mais alto ele pula. Essa sequencia da mala pode ser visto, segundo Bérgson [BERGSON, Henri.( 2007) O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo, Martins Fontes] como o “conflito entre duas obstinações, das quais uma puramente mecânica, acaba ordinariamente por ceder à outra (humana), que com isso se diverte”. No caso, a obstinação humana que vencia e se divertia era a do apresentador Sílvio Santos, mas o grave é que a outra não era a mecânica de uma boneca, não era material, nem um personagem representado por uma atriz-mirim. Era a própria menina Maisa ao vivo.

Neste mesmo programa, após haver passado pela “experiência” de ser trancafiada dentro de uma mala, ter chorado no ar pela primeira vez e de pavor, Maisa aparece no palco apreensiva e chama Sílvio Santos a um canto, para lhe confidenciar um medo e pedir-lhe que o menino de máscara não seja chamado. Sílvio Santos dissimula: “Você está com medo?”; “Alguém te bateu?” Insegura e desconfiada, Maisa começa a chorar. Silvio Santos, desrespeitando a confiança que a criança acabara de lhe depositar e ignorando o seu pedido, chama um menino que está com figurino e uma maquiagem de “monstro”. Ao ver o menino mascarado, Maisa sai chorando, apavorada.

O dono do baú, para provocar em sua audiência, o riso deste drama pessoal da menina por ele causado, sentencia que é tudo diversão/encenação e convoca todos ao riso: “Ela é muito engraçada!”; “Cadê a Maisa?” “Ela fugiu”. “Essa Maisa não tem mais jeito”. Enquanto isso, Maisa gritando “Não quero!” revela-se ser ela própria, uma criança que tem medo de máscara e pavor do menino-monstro.

“Sílvio Santos faz Maisa chorar de novo” (17/maio/2009)

Conseguido o choro no dia 10, que certamente significou elevação de índices de audiência, o que se traduz em faturamento, importava a Sílvio Santos prolongar essa emoção no domingo seguinte. Assim, a situação foi de constrangimento, crueldade, submissão e humilhação. Sílvio diz não querer conversar com a garota “Porque na semana passada você deu vexame, ficou chorando no palco como se fosse uma criancinha de um mês de idade”. “Você me magoou”, argumenta Maisa, chorando e ressentida.

Mas Sílvio ironicamente desprezou o sentimento e o argumento da criança de que fora magoada e insistiu em reduzir o que ela vivenciara a um comportamento inconveniente, inadequado, um vexame. Comparou seu choro ao de um recém-nascido. Maisa lhe pediu para que não falasse mais do choro. Ele cinicamente negou que estivesse falando do seu choro, para afirmar novamente, que ela ficou chorando. E apesar de ela dizer novamente que não gostava da temática, ele insistiu autoritária e insensivelmente, culpando-a e atribuindo o seu choro a um caráter de choro mecânico, de atriz petulante: “Você não gosta de chorar? Mas chora à-toa. Você parece atriz de cinema. Você parece atriz de televisão, qualquer coisinha você chora.”

Em programas anteriores Maisa havia revelado não ter competência artística de fingir chorar. Determinado a continuar autoritariamente falando do tema para fazê-la chorar, Sílvio Santos, astutamente dissimula, menciona novamente o choro, e passa a incitar o público, com o a pedir sua adesão: “Eu estou falando alguma coisa para ela chorar?” A menina explica que ficara magoada por ele dizer que ela chorara e, chorando inconsolavelmente, sai correndo em busca do colo da mãe (que está no camarim), mas ao passar pelas câmeras bate a cabeça em uma delas e a dor física amplifica seu choro. Sílvio Santos externa um “coitada, ela machucou a cabeça” para em seguida voltar a falar do choro, mais uma vez, culpabilizando Maisa de comportamento inadequado ao atribuir seu choro a uma questão de “banca de artista”: “Mas que artista cheia de banca! Não se pode nem tocar no choro dela!” E agora, covardemente incita o público a chamá-la de “medrosa”.

“Que mulher encrenqueira!”

Na primeira volta ao palco, ainda ao som da adjetivação de “medrosa” entoada pelo auditório, ela retoma ao palco, reclamando da dor e se dirige ao seu patrão para lhe pedir a permissão de sair do palco: “Posso ir lá para minha mãe?”. Ele tenta detê-la, sob uma ambígua permissão. Em um curto diálogo ele diz seis vezes a expressão “vem cá”. Tudo isso, depois de perguntar se ela voltaria. Por sua vez, ela também demonstra sua obstinação em sair, insistindo que quer a mãe. Não sem antes declarar: “Eu amo você”, mas usando o argumento da doença e o nome de Deus: “Ó Sílvio, pelo amor de Deus, está doendo muito a minha cabeça”.

Na segunda volta, mais uma vez Maisa retoma (pressionada pela mãe) para justificar-se perante o “seu patrão”: “Ô Silvio, deixa eu esperar sarar depois eu volto”. E sai outra vez para os bastidores. Em sua ausência, mais uma vez Sílvio Santos minimiza a complexidade do que vivenciava a menina para atribuir a situação a uma mera encrenca, causada por uma “mulher encrenqueira”, escamoteando a condição de criança de Maisa, o que lhe retira a responsabilidade sobre o acontecido e a transfere à criança sob o disfarce de adulta: “Só briga, só briga. Que mulher encrenqueira!” Na terceira volta ao seu patrão, Maisa ainda se ouvia a voz dele ao fundo apregoando impossibilidade de convivência matrimonial: “Que mulher encrenqueira! Quem vai querer casar com esta mulher?”, fala que na saída definitiva da menina o apresentador viria a repetir.

Nesta terceira e última volta ela novamente se justificara e se comprometera em cumprir uma responsabilidade que legalmente uma criança livre não poderia ter: “Sílvio, meu Deus, ta doendo muito. Semana que vem eu gravo dois programas, este e o outro.”
Apesar da crueldade desta situação de dominação e de sujeição a que era submetida a criança, ainda assim, os jogos de simulações e artimanhas do astuto apresentador, conseguiam provocar em seu auditório o riso diante do sofrimento da criança. Qualquer cena dramática pode transformar-se em comédia, se imaginarmos que a liberdade é aparente e disfarça uma “trama de cordões”. Bastava pensar nas idas e vindas da menina, neste último episódio, como movimento mecânico do ir e vir determinado pelos puxões dos cordões de uma boneca pelo seu dono: “Vem cá Maisa!” “Que menina engraçada!” “Que mulher encrenqueira!”

Apenas uma “brincadeira”

Conclui-se que o funcionamento do mecanismo que fazia rir era, na verdade, não o mecânico de uma boneca de mola, ou de cordas, nem tampouco a representação artística dessa boneca por uma atriz-mirim. Tratava-se do tolher, do comprimir liberdade da criança de ser ela própria de carne e osso, alegre, esperta, que sofre, que chora, que tem medo de careta.

O grave é que a criança não estava representando um personagem de uma comédia. Era ela mesma, sem ter consciência do papel que desempenhava ali e das interpretações adultas de suas falas espontâneas. Afinal, ela tinha seis anos de idade, o que significa ter poucas
experiências de vida e que estava nas mãos de um inescrupuloso apresentador de programa de televisão em busca de audiência.

O apresentador, dono do baú, manipulava o sentimento real, ora comprimindo-a como se ela fosse uma boneca de mola, bem ao gosto de um “Sílvio Santos prende Maisa na Mala”, ora puxando-a por uma corda, como se ela fosse uma marionete. “Vem cá Maisa”. O apresentador como dono da mala de surpresa e da boneca divertia-se com a idéia de vê-la obstinada, sucumbindo, submissa ao final, como se se tratasse de uma simples mecânica, de uma mera representação.

Portanto, além de revelar toda a sua habilidade como autor e diretor de teatro grotesco, Sílvio Santos também se revelava um hábil ator que conseguia disfarçar a manipulação real dos sentimentos da menina utilizando, desde expressões que poderiam sugerir tratar-se de uma personagem cômica “Como é engraçada, esta Maisa!”, passando pelo recurso de ter em mãos um papel que dizia ser o roteiro até o tratamento da criança como adulto. O que levava telespectadores incautos a poder rir sem culpas e sem acusá-lo de desrespeito à menina. Afinal, ela parecia não uma apresentadora-criança, mas uma atriz-adulta.

E tudo isto não passa de uma “encenação”, de uma “brincadeira”, também para representantes do Ministério das Comunicações, órgão responsável pela concessão de rádios e televisão no Brasil.

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Wanda Chaves Sgarbi
Wanda Chaves Sgarbi
14 anos atrás

Não podemos esquecer que nestes programas de auditório existem as chamadas “ordens” para as reações do público: senta, levanda, aplauso, riso, etc. O público entra de graça, porém, na condição de atender ordens em troca de dinheiro voando, pirulitos e lanchinhos.
É perverso e constrangedor assistir certos programas televisivos mascarados de entretenimento.
O caso Maísa deveria virar lei como a Lei Maria da Penha. Não existe muita diferença entre elas quanto a exploração e humilhação a seres humanos.
Espero que essa garota não venha a ter traumas psicológicos graves. Mas duvido que não venha a tê-los, infelizmente.

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