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Crianças sem direitos

Entrevista com o professor Roberto da Silva, da USP.

professor-roberto-da-silvaPor Marcus Tavares

Neste Dia das Crianças, a revistapontocom convida os leitores para refletirem sobre os direitos da infância. Da infância mais sofrida, desprovida de cuidados, de educação, saúde e carinho. Neste sentido, é bem oportuno reler a entrevista que Roberto da Silva, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), concedeu. Roberto vem concentrando seus estudos e pesquisas na área da infância. Mais especificamente, na triste infância do país, aquela que está ligada aos abrigos, ao abandono e à exploração.

Para o professor, que já atuou como consultor de organismos internacionais, ainda há milhares de crianças que nascem destituídas de direitos no Brasil, simplesmente, porque seus pais não têm direitos. “Conceber a criança como sujeito de direitos significa entender que ela tem direitos, independente de quem sejam seus pais”.

Acompanhe a entrevista:

Marcus Tavares – Crianças abandonadas, privadas e vítimas de violência. Qual a causa de tantas histórias bárbaras?
Roberto da Silva –
Não é possível entender esta questão apenas com a análise de casos concretos que aparecem na mídia, pois as raízes do problema social brasileiro remontam à formação inicial da estrutura social brasileira, assentada sobre dogmas religiosos. Estes, desde o início, atribuíram o estigma da ilegitimidade à crianças, mulheres e famílias que não obedeciam aos cânones da Igreja Católica. Este fato está na origem do abandono de crianças, no concubinato, na estigmatização da mãe solteira e na negação do status de família aos arranjos sócios familiares que não estavam de acordo com os sacramentos cristãos. Esta situação foi particularmente agravada com a exploração sexual da mulher índia, com a introdução da escravidão no Brasil e, posteriormente, com as medidas tomadas para erradicá-la, tais como a Lei do Ventre Livre e a Lei do Sexagenário, que literalmente jogou na rua milhares de pessoas sem nenhuma proteção da lei ou do Estado. As razões da desestruturação familiar no Brasil são históricas, e falta coragem para alguns setores da sociedade tomarem as decisões políticas que se fazem necessárias, tais como o apoio estatal à família, planejamento familiar e atendimento público de saúde para mulheres que não deveriam mais engravidar.

Marcus Tavares – O senhor diria que a infância brasileira, dos dias de hoje, é respeitada pela sociedade?
Roberto da Silva
– A infância de modo geral não. Rejeitados são os filhos dos pobres, das mães solteiras, dos presos, dos que nascem com doenças mentais, doenças congênitas ou deficiência física, exatamente como no passado. A sociedade, sobretudo a classe média, aprova quando estas mulheres ou famílias manifestam publicamente a rejeição pelo filho que nasce e o entregam para adoção. No passado, o juiz de menores destituía as famílias pobres de seus filhos e os entregavam para adoção nacional ou internacional. Hoje, o ECA limita esta prática e a classe média se recusa a procurar crianças para adoção dentro de abrigos. Entende-se que as crianças já incorporaram vícios da cultura institucional que são definitivos na formação do caráter e da personalidade. Mas veja a correria que se faz quando há notícias de um recém-nascido abandonado.

Marcus Tavares – O que é ser criança no Brasil de hoje?
Roberto da Silva –
Ainda há milhares de crianças que nascem destituídas de direitos, simplesmente porque seus pais não têm direitos. Estou falando de emprego garantido, de seguridade social, de licença maternidade/paternidade, de férias, seguro contra acidentes do trabalho, aposentadoria, 13º salário, plano de assistência médica, salário-educação – direitos sociais desejáveis para qualquer família com filhos. Esta realidade ainda nos remete à dicotomia criança x menor (ainda não completamente erradicada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA): filhos que nascem com direitos porque seus pais têm direitos e filhos que nascem absolutamente sem direitos, porque seus pais não têm ou foram destituídos dos direitos sociais. Milhares destas crianças ainda são invisíveis às políticas, programas e ações sociais e são vítimas preferenciais do trabalho escravo, da exploração sexual e da violência doméstica.

Marcus Tavares – Neste sentido, que papel ocupa o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)?
Roberto da Silva
– O ECA instituiu alguns paradigmas que são importantes para a resolução dos problemas que afetam a infância. Conceber a criança como sujeito de direitos significa entender que ela tem direitos, independente de quem sejam seus pais. Mas, na verdade, são os pais quem primeiro asseguram os direitos dos filhos. A doutrina da Proteção Integral significa que a infância deve ser prioritária na destinação dos recursos públicos, mas isso efetivamente não acontece porque os orçamentos públicos ainda estão atrelados aos interesses políticos de secretarias de governo e ministérios. O Estado brasileiro ainda não encontrou a fórmula apropriada para proporcionar Proteção Integral às famílias pobres para que elas não percam os seus filhos para as drogas, para a prostituição, para o abrigo e adoção. Da mesma forma, é necessário haver a unificação nacional dos cadastros de pretendentes à adoção e de crianças disponíveis para adoção, com o objetivo de oferecer uma chance de vida digna para milhares de crianças, hoje abandonadas em abrigos. Estas pendências mostram que o ECA é um instrumento eficiente para proteger os direitos da infância, mas que é preciso aplicá-lo efetivamente e criar os mecanismos que possibilitem ao Estado proteger a família.

Marcus Tavares – E a mídia? Como o senhor analisa sua atuação frente à infância?
Roberto da Silva
– Gosto do trabalho da Agência Nacional dos Direitos da Infância (ANDI), que faz um mapeamento de como os principais veículos de comunicação no Brasil abordam o tema criança e adolescente. As estatísticas mostram um salto qualitativo no tratamento do tema, associando-o cada vez mais à Educação, aos direitos e ao protagonismo e não mais à violência e à criminalidade. Falta à mídia algo que poderíamos chamar de “cultura da infância” para que se sobressaiam, nas reportagens, novelas, filmes, programas de auditório e desenhos animados, os valores próprios da infância. O único aspecto desta “cultura da infância”, pela qual a mídia tem se interessado, é de natureza mercadológica, ou seja, a venda de produtos e serviços para crianças, a maioria deles de valor pedagógico questionável. O excesso de escrúpulos do Governo brasileiro em relação à censura prévia resulta em excessivas concessões às entidades reguladoras da mídia e da publicidade. Vemos o desvirtuamento da imagem, tanto da criança quanto da mulher, o que é extremamente ruim para as relações sociais e humanas.

Marcus Tavares – E a família? O que ela pode concretamente fazer para a resolução dos problemas que afetam a infância?
Roberto da Silva
– O estudo da formação da estrutura social brasileira mostra que família está na origem dos mais graves problemas sociais  em que vive a nossa população. Não a família em si, mas o conceito de família que se quis estabelecer como hegemônico no Brasil. A estrutura social brasileira foi criada para assentar-se sobre o modelo da família nuclear, composta de homem e mulher casados e seus filhos, ignorando os arranjos sócio familiares de índios, negros e resultantes da grande miscigenação racial que houve no Brasil. É a ideia de família enquanto célula mater da sociedade. Este modelo está em crise e há uma multiplicidade de arranjos sócio familiares diferentes da família nuclear, mas que sofre a rejeição por parte do Estado e a discriminação por parte da sociedade.

Entrevista publicada inicialmente pelo Rio Mídia
Centro Internacional de Referência em Mídias para Crianças e Adolescentes

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