Quem cuidará das crianças?

Pediatra José Martins Filho lança livro que reflete sobre a tarefa de educar. A sociedade caminha para robotizar a assistência à criança.

Por Isabel Gardenal
Jornal da Unicamp

Alex acaba de nascer, menino forte e saudável. Apesar de muito felizes, os seus pais ainda não sabem o que fazer após a licença-gestante da mãe, já que os dois trabalham fora e não têm parentes próximos para ajudá-los a zelar pela criança. Essa história, embora não sendo real, se parece muito com a de outros bebês. Num mundo exigente e que relega a infância a um segundo plano, novos desafios se impõem para que os pais consigam de fato educar os seus filhos. Parte desses desafios é lembrada pelo pediatra José Martins Filho em sua obra recém-lançada pela Editora Papirus – Quem cuidará das crianças? A difícil tarefa de educar os filhos hoje. “Se continuar desse jeito, e a sociedade seguir com outros interesses que não a preocupação com a infância, o futuro será muito incerto”, constata o autor.

De acordo com Martins Filho, professor emérito e ex-reitor da Unicamp, o livro completa uma trilogia voltada para as relações das famílias com as crianças, da sociedade com a criança e da criança na sociedade. Na primeira, presente no livro A criança terceirizada, já em sua sexta edição, ele tratou da dificuldade das famílias cuidarem dos filhos, tendo que deixá-los sob os cuidados de terceiros. A seguir, o autor percebeu duas grandes necessidades de hoje: que a educação deve vir do lar e que é importante ficar com as crianças. “É preciso dar afeto e carinho, mas também saber educar e colocar limites. A escola informa, a família educa”, expõe o pediatra, o que originou o segundo livro – Cuidado, afeto e limites: uma combinação possível, em sua terceira edição, escrito em parceria com o psicólogo Ivan Capelatto.

Na nova obra, o pediatra amplia a discussão em torno das crianças, expondo a problemática dos desvios de conduta, os vícios, a sexualidade e o consumismo exagerado, entre outros. Discute ainda a questão da violência urbana, a qual acredita que tenha raízes na ausência dos pais na educação dos filhos, ao não apontar os limites necessários a um bom desenvolvimento emocional e cognitivo.

A situação piorou bastante, pontua o médico, com as mudanças da sociedade nas últimas quatro décadas, isso de modo incipiente já a partir da Segunda Guerra mundial, diante das necessidades econômicas e da tarefa que a mulher passou a exercer no mercado de trabalho, o que é justo, opina o pediatra. Mas à medida que a família começou a não poder cuidar da criança e ela começou a ser entregue em instituições precocemente, sofreu as consequências do desmame fora de hora. “É um sinal dos tempos.”

À medida que o tempo corre, verifica-se um distanciamento do cuidar das crianças pela família. E elas, cedo, estão sendo postas à disposição de outros que não as geraram e não fazem parte de suas famílias, sendo que a relação de amor e de afeto marca a personalidade da criança e a cognição, salienta Martins Filho. “Deste modo, é preciso que se tome uma decisão logo no primeiro ano de vida do bebê: dar mais atenção ao filho do que ao próprio trabalho.”

Para o pediatra, as leis brasileiras deveriam dar à mulher o direito de ser livre, de trabalhar e de ser mãe. “Algumas não querem ser mães: então não sejam. Se querem, têm que ter tempo para cuidar do filho e não delegar esse cuidado totalmente a outras pessoas. Depois de muitos anos, essa ausência aparece no relacionamento dos pais com os filhos e na família. E aí pode ser tarde demais. Se você não pegar na mão de seu filho de três, quatro anos, não pense que, quando ele for adolescente, isso será fácil. É preciso pegar desde o começo”, aconselha.

Pais jovens

Uma discussão muito séria na sociedade ainda é que os pais jovens não se dão conta do que é ter um filho. Há quase uma mitificação da maternidade e da paternidade. Em oposição, o bebê exige muito. Ele quer presença, cuidado, acordar de madrugada, ser amamentado. “Criança precisa ser cuidada. E os cuidadores na maior parte do mundo, até pela personalidade, são mulheres, por cuidarem dos bebês prioritariamente”, enfatiza o médico. “Até parece uma figura atávica. Só que não penso que a mulher deva largar tudo para cuidar da casa e da criança tornando-se infeliz.”

Se os pais quiserem filhos, afirma o pediatra, então devem saber que isso poderá mudar a vida deles. “Façam tudo para ter uma licença-gestante mais prolongada: usem o máximo das férias e da licença para ficar com o bebê. E, retornando ao trabalho, que a mulher continue amamentando. Vão à escola ver a criança sempre, liguem para lá, vejam a criança na internet (se existir este recurso) e saiam para passear juntos no fim de semana.”

Vai aí uma advertência do autor do livro: passeio não é em shopping center e em supermercado, o que pode colaborar para um consumismo futuro. Passeio de criança é em jardim, em praia, no campo. Envolve brincar no quintal, ir ao teatro e à livraria, rezar para a criança – se isso fizer parte da crença. “Fiquem com a criança ao máximo, pois ela precisa lembrar essas coisas dos pais para se sentir bem”, garante.

Superação

Nota-se, felizmente, que alguns adultos passaram por problemas na infância e que conseguiram vencer pela sua capacidade de resiliência. Em geral, tiveram os cuidados de uma avó carinhosa ou de uma babá dedicada. Há bons exemplos na história de pessoas célebres que foram crianças sofridas, como o artista Charles Chaplin e a soprano Maria Callas. Não se sabe se eram emocionalmente felizes, porém foram pessoas extraordinárias, relata o médico.

Nos trabalhos científicos, no entanto, verifica-se que, grande parte das crianças que passaram por momentos difíceis, tende a apresentar insegurança, irritabilidade, dificuldades de relacionamento social, depressão e deficit de aprendizagem. Martins Filho sustenta nesse livro que é preciso ter uma sociedade que compreenda o valor da família para o desenvolvimento psicossocial. Quem tem tempo de cuidar dos seus filhos e dar-lhes a devida atenção, vai formar seres humanos que poderão melhorar a sociedade.

Segundo o pediatra, impõe-se hoje uma tomada de consciência a fim de resgatar o hábito de amamentar, lidar com as crianças e procurar conversar com elas diariamente, estar presente em suas dificuldades e educá-las, apresentando-lhes o que é o certo (e o que não é) socialmente, dando-lhes noções de filosofia, crescimento, justiça, além de respeito ao próximo, aos superiores e aos mais velhos.

A nova geração de pais foi criada dentro do “proibido proibir, não diga não, deixa fazer o que quer”, remete o autor. “Foram filhos que tiveram pais rígidos e que não são assim com os seus. Ao contrário. Os filhos atuais são rígidos com os pais, tiranizando-os por não terem sido preparados para uma relação afetiva, e sentem falta dela.”

Ocorre que já foram propostas algumas soluções, assinala Martins Filho, como na Hungria, de enviar crianças para locais em que pai e mãe profissionais são pagos para cuidar delas em ‘casas de carinho’. Essa experiência parece não ter logrado êxito, revela. Entretanto, não se trata de uma experiência necessariamente nova, já que na Revolução Francesa, lembra, as crianças já eram colocadas em carroças e levadas ao interior para as mães vivenciarem a política.

“Vai chegar o momento em que a sociedade irá robotizar a assistência à criança. Em livros americanos já se fala de alarmes que filmam os bebês e, quando se mexem no berço, ouve-se a voz da mãe, gravada especialmente para eles. É um absurdo”, queixa o pediatra, que há 44 anos se dedica à criança e ao adolescente na sua profissão. “E vejam que essas crianças provavelmente chegarão aos 100 anos face ao avanço da medicina e dos cuidados gerais, da melhor nutrição e da melhor vacinação.”

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