Por Rodrigo Nascimento
Psicólogo e integrante do Observatório de Favelas
Há cerca de cem anos, um ritmo musical criado a partir das expressões culturais de origem africana desenvolvidas pela população de negros recém-libertos da escravidão aglutinava em torno de si uma série de temores e preconceitos sociais. Essa expressão popular e, por extensão, os donos das vozes e corpos de onde ecoavam batucadas, danças e versos reverberavam ainda as marcas, estigmas e estereótipos negativos então vigentes, moldando a imagem – e a cor – do marginal, do malandro, do vadio, da devassidão, libertinagem e imoralidade. Todo esse contexto motivou a proibição desse fenômeno cultural, “duramente perseguido nas esquinas, nos botequins, nos terreiros”…
Bem, acho que eu nem preciso dizer que é do samba que estou falando, do samba que superou esse passado e hoje é exaltado como patrimônio cultural do nosso povo. Esse mesmo samba, “negro, forte e destemido”, que revive hoje um apogeu, sendo encontrado em qualquer canto da cidade maravilhosa, ignorando fronteiras nebulosas e cidades partidas, e que tem na Lapa seu ponto de maior efervescência de encontros e trocas sociais, artísticas, afetivas, corporais e monetárias.
Da mesma forma, levando obviamente em consideração as formas de expressão contemporâneas, o funk assume agora esse papel de vilão, e o funkeiro, por extensão, é atingido por uma saraivada estigmatizante da mídia, dos órgãos governamentais e de parte da opinião pública. O funk carioca – em vez do que acontece no exterior, onde seus ritmos, tambores e artistas são celebrados – em seu próprio berço é dominado por um viés preconceituoso e míope que alimenta a imagem de uma música e uma cultura criada por e para bandidos, espécie de trilha sonora da criminalidade e da pornografia. Desse modo, essa visão limitada ignora a imensa heterogeneidade de seu público, a sua história de conquistas e a força do movimento ao longo do tempo, assim como a magnitude de suas possibilidades expressivas.
Do mesmo modo que outrora o samba foi reprimido, toda e qualquer menção ao universo funk – um corte de cabelo, um modo de se vestir, de falar e se comportar socialmente – são condenadas e tomadas como indício de marginalidade. Indício que se potencializa com a presença de outros referenciais preconceituosos como a cor da pele e o local de moradia.
Um primeiro passo para que esses desmandos e preconceitos sejam superados e eliminados do imaginário popular é reconhecer de uma vez por todas que o funk é uma manifestação cultural brasileira, nascida do entrecruzamento da cultura pop e da música negra estadunidense com o cancioneiro popular nacional. Apesar das evidentes semelhanças com a cultura hip hop, o funk carioca possui uma unidade e um universo próprio de temas, valores e expressões lingüísticas, musicais e coreográficas distintas. Ao versar sobre a realidade das favelas e das periferias da cidade, o funk se apresenta como meio de expressão dos sonhos, angústias, sentimentos e idéias pulsantes no cotidiano de milhares de pessoas, assumindo ares de uma crônica urbana peculiar.
Dado esse primeiro passo, evidencia-se o papel do Estado em desenvolver políticas públicas de estímulo à produção e difusão dessa manifestação cultural. Cabe ao Estado construir parcerias e encampar a realização dos bailes e eventos relacionados ao funk, cumprindo seu dever de fomentar a cidadania e promover o direito à cultura e ao lazer, estimulando a produção artística, disponibilizando espaços apropriados para a realização de bailes, segurança para o público, banheiros químicos, etc.
Do mesmo modo que o samba foi envolvido pela “fidalguia do salão”, sofrendo inúmeras transformações em sua estrutura que geraram diversos outros formatos e estilos, o funk também possui essa possibilidade de miscigenação cultural. Com um pouquinho de imaginação e conhecimento de história da cultura popular, já podemos antever a proliferação de movimentos de resistência do tipo ‘funk de raiz’, e daí por diante. Mas para isso é preciso, antes de mais nada, permitir que o funk se desenvolva e se espalhe pela cidade, dialogando com outras manifestações e grupos culturais, colaborando ainda, dessa forma, para um projeto de cidade integrador e democrático – somente possível a partir da multiplicação de encontros e do livre trânsito da diferença.
O funk, assim como o samba, “agoniza, mas não morre”, e sempre encontrará um aliado “antes do suspiro derradeiro”. Resta ao Estado e à sociedade de modo geral cumprir esse papel – ou do contrário ele será cumprido por outros mecenas, nem sempre desejáveis. A repressão indiscriminada a um movimento de cultura popular pode significar uma grande chance que o Estado de Direto perde na consolidação de investimentos e valores sociais, econômicos e simbólicos, e somente contribui assim por criar novos vácuos de poder que correm o sério risco de serem – ou, em alguns casos, continuarem a ser – mal ocupados.
Publicado pelo site do Observatório das Favelas
É inegável o caráter cultural do funk, visto que este é caracterizado como marca de expressão popular, de linguagem, cotidiano e realidade da favela, através de sua melodia, ritmo e também de suas letras. Entretanto, uma análise sobre o mesmo, exige sim, a observação de outros aspectos que são fundamentais na construção dos indivíduos. É fato que a liberdade de expressão precisa ser garantida e que a produção popular deva ser encarada como forma de romper preconceitos e produzir críticas, contudo, o que garante que os receptores deste estilo musical tenham essa consciência? Será que os que ouvem funk o enxergam como forma de expressão popular ou ouvem alienadamente? Na realidade, o Brasil ainda não está educado para isso e o que poderia ser um ótimo instrumento de reflexão, crítica e expressão popular, torna-se um estímulo para o sexo precoce, pornografia, palavrões, criminalidade, cainda no senso comum, na massificação e alienação popular.
É inegável o caráter cultural do funk, visto que este é caracterizado como marca de expressão popular, de linguagem, cotidiano e realidade da favela, através de sua melodia, ritmo e também de suas letras. Entretanto, uma análise sobre o mesmo, exige sim, a observação de outros aspectos que são fundamentais na construção dos indivíduos. É fato que a liberdade de expressão precisa ser garantida e que a produção popular deva ser encarada como forma de romper preconceitos e produzir críticas, contudo, o que garante que os receptores deste estilo musical tenham essa consciência? Será que os que ouvem funk o enchergam como forma de expressão popular ou ouvem alienadamente? Na realidade, o Brasil ainda não está educado para isso e o que poderia ser um ótimo instrumento de reflexão, crítica e expressão popular, torna-se um estímulo para o sexo precoce, pornografia, palavrões, criminalidade, cainda no senso comum, na massificação e alienação popular.
Promover uma cultura que incentiva a imagem da mulher como uma mera bunda e/ou um mero par de peitos (plastificados, o que é ainda pior), que estimula a cultura da sexualização precoce, que massifica a idéia de que para ganhar dinheiro vale qualquer coisa, e cujas raízes são assumidamente do domínio do tráfico de drogas, não é uma questão de gosto, mas, sim, de falta de senso crítico.
“É engraçado” como as pessoas superlativam seus interesses e pensamentos em detrimento de outros. E pior, não admitem outros pensamentos, outras idéias, outras visões do universo em questão. Não comungam com a diversidade e nem a adversidade. Engraçado, para não dizer trágico. Onde está a tal liberdade do pensamento livre?
A matéria carece de profundidade. Não dá para comparar samba com funk. O samba tem uma história que é intrínsica à nossa formação como país, como povo. Tem uma raiz africana e Africa é uma dos principais componentes da nossa nação. Adquirir hábitos americanos é um sinal de mentalidade colonizada, mentalidade de escravo. O Brasil é um país independente (ou deveria ser). Tem sua própria cultura, deve-se orgulhar dela, sem precisar importar maneirismos americanos. Quem gostar de funk que vá viver nos Estados Unidos, pra ver como é que a banda toca.
Muito bom ler textos como este, de Rodrigo Nascimento, que consegue ver o funk além da imagem estigmatizante e preconceituosa. Vivi o universo dessa música (sim, música) e ainda adolescente reconhecia o funk como forte manifestação cultural nutrida por influências estrangeiras, globalizantes, mas autenticamente potencializada pela criatividade brasileira (sampler, remix, batidas, voz, vozes, baile, poderosas caixas de som, frequências subgraves, danças, rádio, expressão). Lamento que o funk ainda seja marginalizado e classificado por muitos, inclusive educadores, como “cultura menor”, sem valor social, musical, educativo. Destaco o poder de comunicação e de cultura do funk. Interessante dizer que enquanto lia o artigo acima, Elza Soares, no Canal Brasil, fazia um comentário extremamente feliz: “Se disser que bateria não tem melodia, estão mentindo. Vocês acabaram de ouvir uma linda melodia vinda de uma batera”. Era a música samba-funk “Deixa isso prá lá”, num casamento extasiante entre som de uma bateria e a voz dela. O samba ganhou status de patrimônio cultural porque muitos daqueles que viveram a cultura do samba souberam valorizá-la. E, por isso, não sou pessimista sobre o futuro do funk. Logo, passaremos da fase do “deixa que digam, que pensem, que falem!” para a do diálogo democrático, enriquecedor. Felizmente, artigos como o de Nascimento, contribuem para fomentar debates e trazer luz ao tema. Sobre as políticas públicas, acredito que devem ser sustentadas por um povo consciente, que sabe ter mais autoestima e valorizar o belo de sua produção artística e cultural. A música funk conta o seu tempo e contará! Já é memória social.