Por Mariana Amado Costa
Escritora
Pelo que sofrer
Outro dia, falando com uma amiga sobre as agruras do momento atual, ela me disse o seguinte: “É tanta coisa ruim acontecendo, que a gente nem sabe mais de que está sofrendo”.
Realmente, motivos não faltam. Não poder abraçar meus pais por mais de um ano é muito triste. Ter um medo constante de adoecer ou, pior ainda, contaminar alguém, medo de que alguém que amo tenha que ser amarrado em uma cama e entubado “a seco”, sem as medicações necessárias. Isso também, depois de um tempo, sobrecarrega o coração.
Viver num país inteiramente à deriva e que, com uma tragédia coletiva em curso, em vez de ver uma onda de solidariedade — esta existe, mas é pra lá de insuficiente e desestruturada — permanece sendo palco de lutas entre “nós” e “eles”, pronomes que pousam sobre tantos grupos, definidos por qualquer diferença entre pessoas, por mais irrelevante que seja. Quando somos, todos, seres que precisam de amparo.
A escalada de notícias ruins parece não ter fim. Ameaças às instituições e à democracia, ameaças de retorno da ditadura militar, surgem do nada, quando viramos a esquina (metafórica, claro, pois quem pode não vai nem até a esquina) e nos atropelam.
Pior de tudo, a fome que cresce aceleradamente, a desigualdade entre classes sociais e entre nações ricas e pobres. Não acredito que alguém com o mínimo de inteligência e sensibilidade possa não estar sofrendo (para usar o gerúndio com o verbo auxiliar de forma consciente).
Santa empatia avassaladora, Batman!
Para distrair, fui ver um filme (no sofá, entenda-se — sala de cinema ainda existe?) bem sessão da tarde, meloso, óbvio e ainda por cima pretensioso. Acabei me arrependendo, mas a ruindade do programa não evitou algumas lágrimas, na hora que a filha se despediu do pai moribundo. Meu filho chegou na sala e perguntou por que estava chorando. Expliquei. “Por que você não chora pelas milhares de filhas que perderam os pais de Covid?” caiu em cima de mim num golpe certeiro. Chorei, o que não resultou em nada de bom para as ditas filhas.
É bem verdade que eu choro facinho vendo filmes. Quando assisti à Montanha dos Gorilas, solucei tão alto que as pessoas no cinema se viraram pedindo silêncio. Minha irmã, quando me indica um filme triste, já avisa que é para preparar um lençol, porque caixa de lenço de papel não é suficiente. Entre os mais-mais estão alguns do Chaplin (o discurso d’O Grande Ditador é de matar de bonito!) e Aquele que deve morrer (Jules Dassin, 1957), filme baseado no Cristo Recrucificado, do Kazantzakis. Há poucos anos, o belga O Novíssimo Testamento me deu uma rasteira em pleno voo internacional. Mas acho que nenhum bateu A vida é bela, do Benigni — depois dos créditos e de longos minutos sem conseguir levantar da poltrona do Estação Botafogo, rodamos de carro pelo Rio, chorando, sem conseguir voltar para casa. É muito bom chorar de emoção por beleza e poesia.
Uma África de sofrimento
O poeta, professor e filósofo Márcio Tavares d’Amaral (que, para minha grande alegria, é meu padrinho) usa em suas aulas “uma África de sofrimento” como provocação, ao falar da meia humanidade (a depender da medida usada, pode ser mais ou menos) que vive abaixo da linha da pobreza. Em condições de vida tão precárias que fazem um ano de “confinamento classe média” parecer o paraíso.
Mas não são as 300 mil mortes por Covid que nos permitem comparar o Brasil com o genocídio de Ruanda. Ou nossa fome com a fome africana. Ou nossa violência contra a mulher com as gangues de estupro da Índia. Não? Pois a África é aqui, a Índia é aqui.
Vim escrever chorando. Duas amigas, de diferentes cantos do país, me contaram sobre famílias inteiras doentes com Coronavírus. Choro pelos amigos dos amigos. E, mais do que nunca, percebo que eles são parte de mim. Assim como o Africano, o favelado, o negro, o gay, a patroa do coronel da reserva, o traficante.
O desamparo das famílias covídicas (avós, pais, filhos, até o bebê de 11 meses, alguns internados, todos reclusos, quem cuida de quem?) não foi o que mais me entristeceu. Às vezes ouço jornal enquanto cozinho. Pois hoje foi dito, em uma longa reportagem, que a polícia do Rio está banalizando a excepcionalidade das entradas nas comunidades, que, em junho do ano passado, o Supremo proibiu durante a pandemia. Mesmo assim, o número de mortos por ações policiais teve uma “redução histórica” nesse período, sendo, até o fim de fevereiro, de “apenas” 797 pessoas.
Os jornalistas lembraram das crianças e grávidas atingidas dentro ou em frente às suas casas por disparos policiais, entrevistaram vítimas e parentes enlutados. Para coroar, a âncora arrematou dizendo que “pra quem acha que uma justificativa plausível para o uso da violência é que bandido bom é bandido morto, a gente tá vendo que não é bandido necessariamente que morre, né? São crianças, por exemplo, que tão no meio de um fogo cruzado, muitas vezes”.
Claro que a intenção era boa, de crítica à violência policial. E a moça cuidadosamente se excluiu da horda de justiceiros, deixando claro que estava falando “para quem acha”. A miséria está no subtexto, que diz que a vida de um inocente vale mais do que a vida de um criminoso. Não, cara pálida! Não temos pena de morte, assinamos, como nação, casa de um povo, tratados de direitos humanos que (porque votados sob rito de proposta de emenda à Constituição) têm valor constitucional, são cláusulas pétreas!
Nenhuma mãe de assassino foi entrevistada naquela reportagem para dizer: “meu filho era criminoso, por isso ele não deveria ter sido morto, mas julgado e condenado, enviado a uma prisão onde pudesse, no tempo de sua pena, sob condições dignas e seguras, deixar de ser um risco para a sociedade e voltar a ela para ser feliz, porque isso é o que merece todo ser humano”. Lembro de ler, há uns vinte anos, que entrevistaram a mãe de um garoto morto e perguntaram o que estava sentindo com a prisão do rapaz que matou seu filho. A resposta, que causou espanto e mereceu figurar no título da notícia, foi que sentia muita pena, sobretudo por pensar em quanto a mãe dele deveria estar sofrendo.
O que acontece em muitas, tantas, operações policiais é assassinato, o que acontece nos presídios brasileiros é desumano e, frequentemente, tortura. Não exclusivamente, aliás. Negros pobres, bandidos ou não, também são torturados nas favelas. Negros pobres, bandidos ou não (incluindo uma multidão de presos sem julgamento), também são assassinados nas penitenciárias. Essas mortes não diminuem o tráfico, nem os outros crimes. Mas, mesmo que diminuíssem, seriam erradas.
Vidas bandidas importam, todas as vidas importam. Elas são valiosas para mim e sinto que são parte de mim. E sei que são parte de nós, da sociedade humana.
Limites
O confinamento, o medo, os efeitos colaterais das crises transtornaram a vida cotidiana de cada um, de cada família. Nos últimos meses, vários amigos e parentes me disseram que estão “no limite”, significando o limite do peso emocional que suportam carregar. Alguns contam que cruzaram a linha, entrando em profunda depressão. Acho engraçado que, em meio à pandemia e ao governo do Bozo, às vezes a gota d’água vem das situações mais prosaicas: “quando disseram que iam deixar o cachorro lá em casa para eu tomar conta, não aguentei”, “depois de 37 horas sem luz, o atendente da Light me destratou, aí transbordou o caldo”.
Enquanto isso, as guerras fratricidas continuam, o desmatamento explode. Ruanda, Índia, Brasil e o resto do mundo continuam a ampliar a África de sofrimento. Mas não tem que ser assim. Talvez ajude se o limite do mais frágil e vulnerável, daquele cuja vida está por um fio, se tornar o limite de cada um e, assim, o limite de todos. Como se nos coubesse (e talvez caiba às gerações que estão vivas hoje) definir os limites da civilização.