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O olhar infantil para o cinema: entre o encanto e a maturidade avaliativa

Artigo busca fazer uma análise sobre a potencialidade avaliativa dos estudantes de escolas públicas que participaram do Júri Infantil da 3ª Mostrinha de Cinema Infantil de Vitória da Conquista, Bahia.

Por Macelle Khouri Santos
Professora do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – Uesb
Trabalho apresentado no X Colóquio Nacional e III Colóquio Internacional do Museu Pedagógico  

Este trabalho busca fazer uma análise a cerca da potencialidade avaliativa dos estudantes de escolas públicas que participaram do Júri Infantil da 3ª Mostrinha de Cinema Infantil de Vitória da Conquista, no sentido de refletir sobre a importância de ações que pretendem uma aproximação da criança com a sétima arte, e sobre o seu olhar cheio de significações.

Comecemos, portanto, falando do evento e de como se constituiu o júri, para seguir com a análise das avaliações dos alunos sobre os filmes assistidos. Tomamos como material analítico o barema preenchido por eles durante as exibições, bem como suas observações na reunião para conclusão do resultado final.

A Mostrinha de Cinema Infantil é um evento calendarizado, realizado pelo Programa Janela Indiscreta da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Vitória da Conquista, com o objetivo de despertar o olhar curioso e encantado de crianças das escolas públicas do município, proporcionando a elas a exibição de filmes de curta-metragem infantis, além de oficinas de Fotografia e Produção de Vídeo. Fruto do Projeto O que se aprende com o cinema a Mostrinha também volta seu olhar aos professores municipais, proporcionando a eles não só a assistência aos filmes junto com seus alunos, mas também oficinas para discutir a pedagogia da imagem e a formação de cineclubes nas escolas.

Em 2012, o evento conseguiu o patrocínio do Programa BNB de Cultura, e com isso pôde ampliar seu público, totalizando 22 curtas-metragens, de vários lugares do Brasil, exibidos em 12 sessões para 3.600 crianças, entre 4 e 12 anos; e suas ações, incluindo, além das tradicionais oficinas, uma de Animação para os estudantes, a exibição de um longa-metragem em duas praças públicas da cidade, e um Júri Infantil, também composto por estudantes das escolas públicas.

O olhar avaliador

O Júri Infantil foi formado por seis alunas, com idade entre 11 e 13 anos, de três escolas públicas: Escola Municipal Frei Serafim; Centro Educacional Eurípedes Peri Rosa (que fica no distrito de Bate-Pé); e Centro Educacional Professor Paulo Freire (CAIC), e presidido pelo ator mirim, Vinícius Nascimento. Antes de iniciar o Júri, os alunos tiveram uma breve reunião com a professora tutora, na presença de professores das respectivas escolas, para orientação dos procedimentos, distribuição de material e uma rápida explicação sobre os elementos imagéticos a serem observados nos filmes. Esse contato inicial fez-se importante, sobretudo, para atentar os estudantes para a responsabilidade da votação, a qual não deveria dar-se apenas pelo gostar ou não do filme, mas pelas qualidades técnicas e narrativas dos mesmos. Durante o evento, os sete estudantes assistiram aos 22 curtas-metragens e fizeram anotações em uma espécie de barema, que continha três colunas: uma com o nome e informações gerais sobre o filme, tais como gênero, local, ano e duração; uma para que eles fizessem anotações, e outra destinada à nota, que deveria ser dada numa escala de 0 (zero) a 10 (dez) pontos. Após a última sessão avaliativa, os membros do Júri reuniram-se com a tutora para discussão e cálculo do resultado final.

Para melhor ilustrar os resultados da nossa análise, faremos uma breve explanação sobre o resultado do Júri, destacando elementos importantes da narrativa dos filmes premiados, e em seguida, passaremos a uma análise mais detalhada das avaliações dos alunos de modo geral, a partir de considerações de Rosália Duarte (2002) sobre a relação entre filme e espectador.

Dos 22 filmes exibidos, três foram escolhidos para premiação e um para receber menção honrosa, de acordo com a tabela abaixo:

Primeiro lugar – 
As Folhas – nota 10,0
Segundo lugar – Lá longe – nota 9,6
Terceiro lugar – O Fim do Recreio – nota 9,5
Menção honrosa – Disque Quilombola – nota 8,2

Os três premiados foram do gênero ficção e a homenagem ficou para gênero documental. Disque Quilombola retrata uma conversa divertida, através de um telefone de lata, entre crianças de um morro e de uma comunidade quilombola, no município de Vitória, no Espírito Santo. Com a presença de alguns adultos que trazem elementos da história de cada uma das comunidades, o filme revela que há muitas semelhanças entre elas. O curta foi considerado pelas crianças como “muito inteligente e criativo”, porque “mostra as culturas de outras crianças”.

Já o terceiro colocado trata de um fictício projeto de lei que está tramitando no Congresso Nacional com o objetivo de suspender o recreio escolar. Por conta disso, um grupo de crianças de uma escola municipal de Curitiba decide pegar a câmera da escola, escondido da diretora, e filmar a hora do recreio, coletando entrevistas dos estudantes sobre a importância desse momento para a rotina estudantil deles. Na visão dos jurados mirins, O Fim do Recreio é “muito interessante” porque “envolve um assunto importante” e “as crianças conseguem ter um final feliz”, embora a história pudesse ter “a participação de outras escolas”.

Lá Longe, por sua vez, não traz nada de divertido em sua narrativa, pois conta a história de um garoto chamado Julinho que, com a ajuda do seu melhor amigo, foge de casa em busca do pai, que só conhece pelo rosto, registrado num pedaço de uma fotografia. O curta, na visão das crianças, tem “uma filmagem muito boa” e é muito “emocionante” e “misterioso”.

A ausência parental também faz parte do argumento de As Folhas, escolhido, por unanimidade, como o grande vencedor, e que traz em sua narrativa Rafael, um garoto que vive conflitos familiares e sente muito a falta da mãe, já falecida. Marcado pelo mistério, o curta traz como elemento chave uma árvore que deixa cair suas folhas o tempo todo. Para os membros do júri, essa aura misteriosa chama muito a atenção, o que faz dele “um filme surpreendente, emocionante e interessante”, com “mais imagens do que falas”, o que “é muito importante para um filme”.

Analisado os dados do júri, percebemos que as crianças dedicaram um olhar atento aos filmes e que foram rigorosos em suas notas. Os filmes escolhidos possuem qualidades narrativas interessantes, e algumas foram observadas com clareza por elas. Vale destacar que os estudantes, embora se sentissem mais motivados pelos filmes de ficção, souberam valorizar o gênero documental, não somente na escolha da Menção Honrosa, mas na percepção de que “faltou mais espaço para o documentário” na Mostrinha de Cinema Infantil.

Com relação aos filmes elegidos em primeiro e segundo lugares, chama a atenção o fato de serem narrativas mais elaboradas, que tratam de questões delicadas como a ausência do pai ou da mãe na vida de uma criança. O drama superou a comédia e a diversão na escolha dos estudantes, demonstrando certa maturidade na avaliação e eleição dos filmes. Nesse sentido, cabe ressaltar ainda que, embora o presidente seja ator, e por isso mesmo conheça o processo de produção fílmica mais de perto, as análises das alunas das escolas públicas não demonstraram nenhuma disparidade em relação às observações feitas por ele. A diferença estava na compreensão um pouco mais apurada, por parte dele, tanto da estrutura narrativa quanto de questões técnicas.

O olhar significador

De acordo com Rosália Duarte (2002, pg.59, grifos da autora), um fator relevante na relação do espectador com o cinema é a “identificação”, pois é ela a responsável pelo “vínculo entre o espectador e a trama”, já que possibilita a quem assiste “identificar-se com a situação que está sendo apresentada e reconhecer-se, de algum modo, nos personagens que a vivenciam”.

Analisando as observações e anotações dos estudantes, pode-se notar o quanto a identificação foi quesito fundamental nas suas avaliações. Falas como: “ele atrai a atenção das crianças porque é um desenho” ou “o filme não foi compreensível” revelam como elementos do mundo infantil os tocam especialmente, da mesma forma que aquilo que não está tão claro, para eles não faz sentido.

A impressão de realidade, destacada por Duarte (2002, pg. 58, grifos da autora) como “base do grande sucesso do cinema”, também foi alvo das observações dos jurados mirins, percebida com muita clareza em falas como: “É muita emoção, pois tem muita ficção misturada com um pouco de realidade” ou “a figuração do ratinho foge à realidade”.

Duarte (2002, pg. 60, grifos da autora) fala ainda da interpretação, entendida como “o modo como atribuímos significado às narrativas em imagem-som” como outro elemento fundamental na relação do espectador com os filmes. Nesse sentido também é possível destacar falas dos estudantes, tais como: “Incrível, romântico e interessante” ou “um filme muito expressivo” ou ainda “a música não combina com o filme” e “o filme deveria ter terminado de outra forma”.

Ainda nesse contexto de significação das narrativas, faz-se extremamente relevante destacar o conhecimento, ainda que inicial, da linguagem cinematográfica, pois as seis estudantes que compuseram o júri já tinham tido contato com estudo e/ou prática ligados ao cinema, seja na escola onde estudam ou através de oficinas promovidas pelo Programa Janela Indiscreta.

Esse conhecimento se revelava nas avaliações, pelo uso de expressões como: “A trilha sonora estava ótima e compatível com o filme”; “o filme é tipo uma reportagem”; “teve um pequeno erro técnico, mas foi criativo”; “difícil fazer animação com tanto sentido”; “ele é quase um cinema mudo”.

O olhar encantado

A experiência do Júri da 3ª Mostrinha de Cinema Infantil nos permite ainda mais algumas reflexões sobre o olhar da criança para o cinema. De acordo com Bruno Bahia (2009, pg.166),

O mundo expandido e verdadeiro aparece para a criança muito mais como o vir-a-ser do que realmente ele é. O cinema, assim, como outras expressões de arte, exploram o recorte de algo que se torna real no foco e que acaba se diluindo na macro-visão. O cinema aparece para resgatar essa forma de ver o mundo da criança, que, de algum modo, é diminuído e, sim, aumentado, ou seja, o que nos parece micro, o cinema resgata e nos reapresenta como macro.

Ao avaliarem os filmes, as crianças demonstraram consciência do compromisso e da responsabilidade de participar de um júri, mas também se deixaram invadir pela magia do cinema, projetando-se nos filmes, sorrindo ou sofrendo com eles. Nesse sentido, chama a atenção a escolha de As Folhas e Lá Longe. Para aqueles que possuem um olhar conhecedor da linguagem cinematográfica, é possível apontar problemas técnicos em ambos os curtas-metragens. Mas, para esses jurados mirins, foram as sutilezas das narrativas o que mais importou; histórias que os tocaram de modo especial. A complexidade presente na narrativa de

As Folhas impressionou-os significativamente,atestada inclusive pela fala do presidente do júri, para quem o filme traz em si “sentimentos e conflitos paralelos” que se expressam por meio do contato do garoto com a árvore e suas folhas.

O Fim do Recreio tem mais qualidade técnica e um roteiro bem estruturado, tendo sido, inclusive, o campeão da 11ª Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis, eleito tanto pelo Júri Oficial, composto por profissionais da área, quanto pelo voto do público infantil. Mas para os jurados da 3ª Mostrinha de Cinema Infantil, ele não superava os outros.

No que tange à Menção Honrosa, ambos os júris elegeram Disque Quilombola. Sinal de que as crianças também são capazes de perceber o valor de um filme que revela a cultura e a realidade cotidiana de crianças de outros lugares, embora algumas das juradas mirins tenham manifestado certo asco ao ver as cenas em que as crianças da comunidade quilombola comem tanajuras fritas, o que impactou as suas notas.

Inês Teixeira (2010, pg.118) enfatiza que “são várias as contribuições educativas do cinema. Por meio dele podemos conhecer diferentes interpretações sobre a realidade, refletir sobre o comportamento humano, aprofundar nosso processo de autoconhecimento e de conhecimento do mundo”. Para as crianças, o mais marcante da experiência de participar do júri foi a possibilidade de refletir sobre os diversos temas e formatos de filmes. Para as duas alunas do Centro Educacional Eurípedes Peri Rosa, a avaliação dos filmes deveria ser rigorosa, por se tratar de um júri, mas era preciso ser compreensivo com as falhas técnicas, pois elas sabiam como era difícil fazer um filme.

O olhar para o cinema

A fala dessas alunas é fruto da experiência vivida por elas no Centro Educacional Eurípedes Peri Rosa, que estimula os alunos a escreverem roteiros e filmá-los. Há cinco anos, a partir da participação de um professor na oficina Cinema e Educação e Educação do Olhar, promovida pelo Janela Indiscreta em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, a escola deu asas a um projeto que já contabiliza quatro mostras de cinema com filmes produzidos pelos próprios estudantes. Hoje, além dessa ação no distrito de Bate-Pé, a Rede Municipal de Ensino também conta com um projeto similar no distrito de Inhobim, e já vem realizando algumas ações voltadas ao cinema e o audiovisual em escolas da zona urbana.

Essa trajetória que começa com o trabalho do Programa Janela Indiscreta, através do oferecimento de seminários e oficinas para o público docente, promovendo uma sensibilização desses professores para a importância de se trabalhar o cinema dentro do espaço escolar, além de oferecer a eles capacitação para tal, e ver essa ação resultar num envolvimento efetivo de professores e alunos para a produção videográfica dentro da escola, é muito significativa. Retomando Teixeira (2010, pg.120), podemos afirmar que levar o cinema para dentro da escola deve ter o compromisso de “interrogar, interpelar o que as crianças e os jovens já trazem consigo, fazendo-os desaprender para aprender algo novo, diferente do que já conhecem”. E foi esse olhar aberto para o novo que pudemos perceber nas anotações e avaliações das alunas das que participaram do júri. O contato com um cinema de qualidade e com a prática da produção em vídeo, quer sejam em oficinas ou dentro do seu espaço escolar, descortinou para elas uma capacidade perceptiva mais madura e consciente a cerca das imagens, das narrativas e dos seus sentidos.

Considerações finais

O que motivou a escrita deste artigo foi justamente a percepção do valor das trajetórias que marcam a relação do cinema com a educação, pautadas no compromisso de despertar o olhar, sobretudo das crianças e jovens, para os caminhos do cinema e do audiovisual. Quando compreendemos o exercício da docência como um compromisso constante de apontar caminhos, sabemos que cabe ao professor estimular novos olhares e, sobretudo, trabalhar pelo aprimoramento desses olhares.

A análise das perspectivas avaliativas dos estudantes que compuseram o Júri Infantil da 3ª Mostrinha de Cinema Infantil revela que um contato mais efetivo com o cinema impacta, sobremaneira, o olhar interpretativo sobre o filme. Tanto o presidente, por ser um ator mirim, quanto as estudantes que estão tendo a possibilidade, não só de estudar sobre cinema e audiovisual, mas também colocar em prática esse aprendizado dentro do seu ambiente escolar, demonstraram uma percepção diferenciada das narrativas e também dos aspectos técnicos dos curtas-metragens. Levando-se em conta que avaliar 22 filmes diferentes, num intervalo de apenas dois dias, requereu desses estudantes um grau de atenção e envolvimento significativo, podemos dizer que a maturidade avaliativa se deve à possibilidade que eles tem tido de aprender a olhar o cinema com olhos iluminados pelo conhecimento dessa gramática específica. Tomando como referência o resultado da Mostra de Cinema de Florianópolis, fica claro que o olhar de espectador deles, embora ainda muito marcado pelo universo infantil, não deixa que as sensações da infância comprometam sua postura de avaliadores, pois o conhecimento que carregam lhes possibilita avaliar e criticar os filmes com segurança e firmeza, percebendo o diálogo entre as imagens e entre essas e o som.

A trajetória que compôs a nossa análise aponta para uma continuidade não só de ações efetivas no ambiente escolar, assim como fora dele, mas também para uma diversidade de caminhos de pesquisa a partir desse contexto. Fica, por hora, a valia de pensarmos sobre como o olhar da criança é um olhar encantado, que traz consigo o valor do espantamento, que nós, adultos já perdemos pelo caminho. Talvez, nós mesmos estejamos precisando nos permitir outros olhares, mais sensíveis e perceptivos, com certo grau de espanto, que nos conduza a novas descobertas, surpresas e, por que não dizer, encantos.

Referências
– BAHIA, Bruno. Imagem: da infância ao cinema ou do cinema à infância. In: In: FRESQUET,Adriana (Org.). Aprender com Experiências do Cinema. Desaprender com Imagens da Educação. Rio de Janeiro: Booklink; CINEAD-LISE-FE/UFRJ, 2009.
– DUARTE, Rosália. Cinema e Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
– 
TEIXEIRA, Inês Assunção de Castro Teixeira. Uma história sem fim – O cineclube abraça a escola. In: ALVES, Geovanni e MACEDO, Felipe (Orgs). Cineclube, Cinema e Educação. Londrina: Práxis; Bauru: Canal 6, 2010.

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