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De Gutenberg ao Facebook

A constatação de que as mídias são desencadeadoras de mudanças apenas quando existem condições sociais favoráveis é antiga. Leia o artigo do jornalista Flávio de Carvalho Serpa.

Por Flávio de Carvalho Serpa
Revista Retrato Brasil no 45, abril de 2011

Que papel tiveram realmente as redes sociais e telefones celulares nas rebeliões do Oriente Médio? Muita gente deslumbrada com as novas tecnologias e serviços em rede vislumbrou, logo depois do início dos conflitos, uma nova era para a humanidade, como se o Facebook, a principal rede social mundial, com mais de meio bilhão de associados, tivesse poderes nunca antes experimentados pela humanidade.

É fato que os meios de difusão das ideias e de chamados à ação cumprem uma parte importante na evolução cultural e política da humanidade. A tecnologia da imprensa, de Gutenberg, foi efetivamente um agente novo de propagação de mudanças sociais profundas.

A constatação de que as mídias são desencadeadoras de mudanças apenas quando existem condições sociais favoráveis é antiga. Mas como o contágio se propaga e qual o papel das mídias são questões que apenas na modernidade começaram a ser rastreadas.

Revolução madura

Quando Lênin criou o jornal Iskra (centelha), ele tinha bem claro que a ignição precisaria de uma pradaria adequada para se propagar. “Da centelha surgirá a chama” era o lema do Iskra, que cumpriu papel importante na formação do partido comunista. Para provar que a mídia não era a toda-poderosa na história, o título Iskra foi surrupiado pelos mencheviques, e foi para o brejo. O novo jornal bolchevique, o Proletári, não tinha o mesmo charme do Iskra, mas era amparado pelo decidido partido leninista.

As rebeliões no Oriente Médio, nesse sentido, são um momento histórico privilegiado, pois dão à ciência a chance de acompanhar em tempo real o que está acontecendo e como as mudanças se desdobram.

O resultado histórico vai depender muito das condições objetivas existentes em cada local. O grito do Facebook, do Twitter e das redes de jovens armados de telefones celulares teve resultados muito diversos nos países da região de falantes da língua árabe. Na Tunísia e no Egito os regimes despóticos, corruptos, burocráticos e ineficientes nem perceberam o que estava acontecendo, e quando se deram conta já era tarde demais para agir. Naqueles países, as elites nem se preocuparam em controlar as massas, a não ser pelo uso indiscriminado da força policial, o que só agravou os conflitos.

Já no Irã e na Arábia Saudita, depois dos primeiros sustos os regimes locais passaram a combater as revoltas com as próprias armas dos desafiantes. No Irã não há mais espaço para as mídias sociais: a polícia monitora todos os suspeitos e chega em maior número nos locais de manifestação. O mesmo ocorre na Arábia Saudita e na China, onde os conteúdos perigosos ou são bloqueados, ou simplesmente derrubados com ataques de hackers chapa-branca.

Isso explica um aparente paradoxo: por que a infecção não é maior em países com mais alta densidade de redes sociais? Ironicamente, nos Estados Unidos o impacto dessas redes nas mudanças sociais é limitado, quando não retrógrado. Elas ajudaram muito na mobilização para a eleição de Barack Obama, mas não conseguiram engrenar uma onda nem mesmo reformista.

É provável que a experiência bem-sucedida do Egito não vá replicar em lugar nenhum. Mas vale esmiuçar seus detalhes para tirar lições gerais de como a revolta pode se espalhar como uma coqueluche. O egípcio Ahmer Maher pode ser considerado um dos principais estrategistas da derrota de Hosni Mubarak. Em 2008, ele abriu uma página no Facebook de apoio à greve na cidade industrial de Mahalla, usando a rede social como arma de mobilização. Ele contou ao jornalista Marcelo Ninio, enviado especial da Folha de S.Paulo, como as coisas aconteceram. Antes de adotar as tecnologias modernas, ou seja, enquanto fazia uso das formas tradicionais de organização e militância, Maher apanhou e amargou cadeia e tortura.

“Em vez de ficarmos nas ruas, correndo o risco de sermos presos de novo, decidimos que todos criaríamos blogs para contar o que estava acontecendo no país e mobilizar mais jovens. A guerra virou digital. Em 2008, eu e uma amiga criamos uma página no Facebook para apoiar a greve dos trabalhadores da cidade industrial de Mahalla. Em apenas cinco dias a página tinha mais de 80 mil membros”, disse ele à Folha. E conclui. “A internet foi apenas uma ferramenta. O que causou a revolução foi a vontade de mudar e a disposição em fazer sacrifícios.” Portanto, desistam de fazer a revolução no conforto de uma lan house.

Depois das convocações via Facebook, o próprio Maher se surpreendeu. “Pensávamos que viriam uns poucos milhares, mas apareceram 100 mil só no Cairo. A revolução estava madura, só faltava uma gota a mais de querosene para fazer tudo explodir. E essa gota foi a violência da polícia contra os manifestantes”.

Margem estreita

Em muitos países, o que não falta é a situação madura. O que falta é o estopim para espalhar a revolta. Por que eles não se acendem espontaneamente? Uma tentativa de explicar o contágio dessas iniciativas foi a analogia dos “vírus mentais”, entidades voláteis que passariam de cérebro a cérebro nas multidões. Essa ideia foi sugerida por Richard Dawkins em 1976 no seu livro O gene egoísta. Segundo Dawkins, existiriam mecanismos replicadores (ele não gosta do termo “vírus”) que seriam os transmissores da evolução cultural, assim como o gene é o da evolução darwiniana.

Essa entidade da replicação de ideias e costumes seria algo batizada por ele de meme, que seria para o cérebro o análogo do gene na genética. Ele é considerado uma unidade de informação imaterial que pula e replica de cérebro em cérebro, entre locais nos quais a informação é armazenada (como livros) ou em outros locais de armazenamento ou cérebros. Para Dawkins e seus seguidores, o meme não seria material como um vírus, mas estaria sujeito às mesmas leis estatísticas de proliferação epidêmica.

A virulência numa epidemia biológica pode ser avaliada por fatores como a potência do agente, sua velocidade de replicação, condições ambientais de propagação e vários outros fatores conhecidos da medicina, mas, no caso da replicação de memes, as condições para que ela seja efetiva ainda são desconhecidas. Portanto, é pouco provável que um bando de geniozinhos políticos e informáticos consiga bolar uma “virose” efetiva.

De qualquer maneira, a internet e suas redes sociais entraram irreversivelmente para o arsenal da política, assim como os livros de Gutenberg. Ao longo da história, os livros desencadearam grandes movimentos de mudanças sociais, mas também muitas obras deletérias, como Mein Kampf, de Hitler, causaram grandes desastres para a civilização.

No caso da internet, é possível dizer que ela, por sua natureza anárquica e libertária, possa ser inerentemente uma propagadora das democracias política e econômica?

Num recente fórum de debates da revista The Economist, a resposta foi meio nebulosa. Os leitores da revista, formadores de opinião em escala mundial, ficaram perto do empate. Por 58% a 42% dos votos, ganhou a tese de que a internet levará, por sua própria natureza, a um mundo mais democrático. Mas a margem foi muito estreita, deixando bastante evidente que a rede mundial pode também ser levada a manipular as maiorias. O que não faltam são interesses econômicos e políticos gananciosos para que isso aconteça. A política e a economia, como tem sido até agora, é que são os fatores mais decisivos das mudanças.

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