Por Maria Inês de C. Delorme
Pós-doutorado na área de Infância.
Professora da rede publica municipal do RJ e da Faculdade de Educação da UERJ.
Email: [email protected]
Pode-se dizer que muitas questões contemporâneas que estão postas em discussão têm sido enviesadas por perspectivas anacrônicas, às vezes sustentadas em preconceitos, que se distanciam muito da realidade social atual. Nesse momento me refiro ao conceito de família que vem sendo defendido pelo projeto de lei chamado Estatuto da Família, à despeito dos diferentes arranjos familiares que existem hoje, dos quais as crianças brasileiras fazem parte.
Como professores e pesquisadores temos o dever de reconhecer, e de legitimar, esses variados arranjos como famílias que são, considerando alguns aspectos importantes como o fato de as crianças e seus adultos de referência morarem numa mesma casa, seja ela como for, em que valham entre eles laços afetivos e de compromissos mútuos como fontes de vínculos indispensáveis à estruturação interna dessas e de todas as crianças. Para essa defesa, consideramos a vida ordinária dessas mesmas crianças, sem maquiagem ou photoshop, que já ocupam esse conceito ampliado, não menos qualificado, de família como, de fato, o são. Nesse viés, parece que tentar encapsular a riqueza e a diversidade dessas experiências sócio-afetivas num único modelo, implicaria desconhecer, desvalorizar e manter à margem certas práticas sociais que, contraditoriamente, exigiriam reconhecimento e legitimação.
Não nos cabe, portanto, como representantes do mundo adulto, julgar nem desqualificar as famílias identificadas pelas crianças com quem convivemos, as que reconhecidamente as apoiam, acompanham e protegem, inclusive garantindo o seu direito de integrar uma família, consanguínea ou não, independente de serem formadas por um homem e uma mulher, desde que essas lhes assegurem afeto, proteção, segurança, educação, saúde, apesar do apoio capenga do Estado brasileiro.
O que podemos verificar, em contato com as crianças, é que o irmão mais velho, a avó, a/o companheira/o do pai ou da mãe, independente do gênero, podem ter vínculos afetivos sólidos e estruturantes para a vida delas onde, também, a renda familiar parece não comprometer a qualidade desse vínculo.
Sabe-se , também, que é brincando que as crianças expressam como vivem, o seu nível de participação na vida social, seus medos, sonhos, expectativas, experiências reais e imaginadas. É em situação de brincadeira, com outras crianças que elas mostram como entendem as regras da vida social e do mundo em que vivem. É, também, por meio de brincadeiras que elas tensionam, questionam e criticam aspectos do mundo adulto que precisam ser compreendidos.
Nesse percurso, apresenta-se como anacrônica e ultrapassada essa definição preconceituosa de família como uma “entidade familiar que têm se caracteriza como um núcleo formado a partir da união entre um homem e uma mulher”, como o Estatuto da Família vem propor. E, para sua superação precisamos ampliar essa discussão entre os adultos, em diferentes espaços, e também com as próprias crianças .
Uma forma interessante de conduzir essa conversa com as crianças pode tomar como ponto de partida os diferentes tipo de famílias apresentados por personagens conhecidos de desenhos animados, sem desprezar as tensões internas de cada um deles com seus respectivos núcleos familiares. Pode-se começar pela família da “Peppa”, que vem encantando as crianças que brincam, não apenas imitam , nem repetem o que veem; elas recriam e ressignificam o papel do irmão, do pai, da mãe e dos avós na dinâmica familiar dos Pigs. Também há um desenho animado que se chama ”Como Treinar seu Dragão”. Nele, o menino-vicking chamado Soluço é meigo, doce e busca proteger os dragões enquanto seu pai, com quem vive, é um vicking rude que deseja exterminar esses mesmos dragões. Há, também, as irmãs Anna e Elsa, do filme Frozen que, alem de serem órfãs, ainda precisaram se separar e que, ao final, comprovam ser um “beijo de amor verdadeiro” uma prerrogativa fraterna e libertadora, também, não apenas uma prerrogativa de princesas e de príncipes encantados.
Isso posto, podemos afirmar que as crianças precisam é mesmo de abraços quentinhos, protetores, de adultos presentes e atuantes em suas vidas, homens ou mulheres firmes e afetuosos que sejam modelos de honestidade e de respeito com quem possam, ainda, estabelecer dialogo sobre seus sonhos, derrotas e vitorias, além de trocar “ beijos de amor verdadeiro” para que sintam-se seguros e felizes.
Textos como este, de Maria Inês Delorme, são fundamentais para que todos nós entendamos o que fato importa quando nos referimos à vida em família, em especial em nossa convivência com as crianças. A ênfase no afeto, apoio, proteção dos que vivem na célula primeira de uma sociedade revela bem o que deve realmente ser entendido por familia, independente do tipo de relação entre os responsáveis, dos laços de consaguinidade e, do que a letra anacrônica define o termo. Parabéns à revista e à professora Maria Inês.