Do site ComCiência
Por Simone Pallone de Figueiredo
Jornalista, pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Universidade Estadual de Campinas (Labjor/Unicamp) e doutora em política científica e tecnológica pela Unicamp.
A situação do sobrepeso e da obesidade no mundo hoje se apresenta como um quadro alarmante, de índices crescentes em praticamente todos os países, que independe do estágio de desenvolvimento e até mesmo da condição socioeconômica das populações. Atinge ricos e pobres, homens e mulheres, famosos e anônimos em maior ou menor proporção. Uma preocupação grande das autoridades e profissionais da classe médica gira em torno das crianças e adolescentes, numa previsão de acirramento da situação nos anos próximos, aumentando os riscos de doenças que são apontadas como decorrentes ou associadas ao excesso de peso, de óbitos precoces e dos custos para os indivíduos e para a saúde pública.
Esse quadro tem sido apresentado como uma epidemia, sendo a obesidade assim tratada e difundida por médicos e outros profissionais da área da saúde – psicólogos, nutricionistas, enfermeiros, professores de educação física –, além de autoridades governamentais responsáveis pelos cuidados da população e pela manutenção dos sistemas de atendimento à saúde. A ideia de epidemia é disseminada também pela mídia, atingindo um público amplo.
Jornais, revistas, programas de TV e rádio de todo o mundo têm trazido o tema para os seus noticiários e pesquisadores têm examinado como e com que frequência o tema aparece nos veículos. Em um trabalho publicado em 2007, Natalie Boero, socióloga da San José State University, Califórnia, EUA, apresentou uma análise do The New York Times, um exemplo de como a imprensa tem disseminado o aumento das taxas de sobrepeso e obesidade.
A pesquisadora analisou 751 artigos sobre obesidade publicados no jornal, com o objetivo de mostrar como a mídia ajudou a apresentar a obesidade como uma epidemia no período de 1990 a 2001. Em primeiro lugar, ela ressaltou a importância dada pelo jornal ao tema. O número de artigos sobre obesidade ultrapassou os que tratavam de cigarros e hábito de fumar (544), sobre Aids (672) e poluição (531). Os artigos analisados tratavam de obesidade, gordura, tamanho do corpo, e apareceram em uma grande variedade de contextos, entre os quais saúde, perda de peso, crianças, beleza, produtividade no trabalho, saúde pública, discriminação e economia.
Além de uma reflexão sobre uma epidemia biomédica, a mídia, segundo a pesquisadora, teve um papel importante na construção da ideia de epidemia e, fazendo isso, confiou fortemente no discurso de gordura, moralidade, risco e ciência que há tempos designa a obesidade como uma entidade médica ou epidemia americana. A valorização da magreza como padrão de beleza a ser perseguido também foi tratada no estudo.
Outros jornais e revistas têm destacado os riscos desse aumento do peso das populações, as doenças associadas, os custos, quem são os mais atingidos, que medidas os médicos, pesquisadores, indivíduos e governos têm tomado na direção de conter ou controlar a chamada epidemia. É normal que a imprensa faça isso, em se tratando de tema tão relevante, afinal é seu papel prover a informação e compreensão necessárias para que as pessoas sejam capazes de pensar criticamente sobre os temas científicos que afetam diretamente as suas vidas (Nelkin, 1987).
Buscando encontrar resultados como os de Boero quanto à colaboração da imprensa na construção de ideia de epidemia da obesidade, realizei um estudo sobre o jornal Folha de S. Paulo, no período de 1998 a 2008. Foram encontrados 563 textos, mas a amostra acabou sendo reduzida a 305 porque vários desses textos faziam parte de uma mesma reportagem (retrancas) e outros poucos – notas sobre eventos ou lançamento de livros – foram descartados.
A análise das matérias publicadas tentou provar, em primeiro lugar, que há uma insistência da imprensa em divulgar o tema obesidade no jornal, pelas mais variadas razões: interesse público, interesse do grupo de atores envolvidos na indústria da saúde em divulgar a questão ou pelo interesse do veículo em atrair a atenção dos leitores e vender mais jornais, e de atrair mais anunciantes e ampliar suas relações com os dois grupos. Também fazia parte dos objetivos saber se a obesidade foi veiculada e tratada como doença/epidemia, mesmo que o veículo trate de aspectos variados sobre a questão – causas, consequências (efeitos físicos, psicológicos, econômicos), tratamentos, pesquisas, novos medicamentos, mercado. Por último, se as fontes procuradas para tratar do tema pertenciam às mesmas áreas científicas, permanecendo no âmbito das ciências da saúde, enfatizando, desta forma, o discurso predominante, que reforça a autoridade do campo científico da medicina, reafirmando a legitimidade da autoridade médica para tratar do assunto.
Dos resultados obtidos, a editoria que contemplou o maior número de matérias foi “Cotidiano” (41%); o ano que teve mais matérias sobre obesidade foi 2003 (41) e a notícia foi o gênero jornalístico mais encontrado (41%). Mas os resultados mais relevantes para o fim deste trabalho são os relativos às fontes consultadas, à caracterização da obesidade e à atribuição de responsabilidade.
Para a grande maioria dos textos, as fontes mais ouvidas foram profissionais da área da saúde – 120 médicos e 30 de outras profissões –, com destaque para médicos ou cientistas de instituições públicas (87 matérias), fontes essas que podem ser caracterizadas como autorizadas ou institucionais. Os profissionais do setor privado (33) foram o segundo grupo mais consultado como fonte de informação. Dentre os entrevistados, 31 eram estrangeiros da área da saúde, ligados a universidades ou instituições de pesquisa. Notou-se uma recorrência aos representantes das sociedades médicas, que pode ser justificada pela confiabilidade da fonte. Por serem presidentes dessas sociedades, esses médicos são investidos de uma autoridade reconhecida pela classe.
Entre as fontes governamentais nacionais encontradas nos textos, as privilegiadas foram o Ministério da Saúde, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Internacionalmente, foram ouvidas ou citadas a OMS (Organização Mundial da Saúde), FDA (Food and Drug Administration) e CDC (Centers for Disease Control and Prevention). Foram poucos os nomes que representaram a classe política.
Em relação à caracterização da obesidade, as matérias que atribuíram caráter epidêmico representaram cerca de 18% da amostra, ainda que uma proporção muito maior de tais notícias (33%) tratassem da obesidade como doença. Aproximadamente 21% das matérias consideraram que a obesidade causa ou agrava outras doenças, e 4% apenas a associaram a outras doenças, sem atribuir relação de causa ou consequência. Uma parte consideravelmente menor das matérias (7%) caracterizou a obesidade como resultado de comportamentos inadequados – hábitos alimentares errados ou sedentarismo; consequência de fatores ambientais (3,6%); e estigma social (4,6%).
As matérias analisadas propunham vários tipos de tratamentos, entre os quais a opção de mudança de hábitos alimentares/reeducação alimentar, dieta, prática de exercícios físicos, uso de medicamentos, cirurgia de estômago, psicoterapia e a combinação de uma ou mais dessas opções (o mais indicado pelos endocrinologistas). A sugestão do tratamento para combater a obesidade com o uso de medicamentos apareceu em todos os anos analisados, sendo que em 2007 houve um maior número de indicações para esse tipo de tratamento (8), sendo uma vez aliado à prática de exercícios. Não é de se admirar que esse seja o ano em que foi liberada a comercialização do Acomplia (rimonabant) no Brasil, substância que atua na área do cérebro e ajuda na regulação fisiológica do equilíbrio energético, ingestão de alimentos e metabolismo de lipídios e glicose, promovendo assim emagrecimento. Esse foi também o ano em que o medicamento foi retirado do mercado em todo o mundo, após a verificação de que usuários do mesmo apresentaram o dobro de chances de desenvolver problemas psiquiátricos – ansiedade e depressão, por exemplo.
O tratamento pela cirurgia bariátrica teceu maior número de referências nas matérias analisadas no ano de 2000 (4). Nos demais anos o procedimento foi sugerido de uma a duas vezes. Esse procedimento é recomendado para pessoas que tenham IMC (Índice de Massa Corpórea) igual ou maior que 40 kg/m2, ou acima de 35 kg/m2 que apresentem alguma doença associada, como diabetes mellitus, por exemplo. Esse tem sido o principal – ou último – recurso para obesos mórbidos perderem o excesso de peso.
Apesar de o controle social sobre a obesidade se concentrar fortemente nas mãos do profissional médico, e, por conseguinte, a responsabilidade pela sua ocorrência ou solução, há, além do próprio indivíduo, outros atores que exercem influência sobre o processo de medicalização e também são responsabilizados tanto pela condição quanto pelo controle ou “cura”. Tais atores são as autoridades públicas, ligadas ou não ao setor da saúde, os laboratórios farmacêuticos, a indústria alimentícia, academias de ginástica, as seguradoras, entre outros.
Porém, parte da responsabilidade é atribuída ao próprio indivíduo. Tanto nos consultórios médicos quanto pelos meios de comunicação, a medicina responsabiliza o indivíduo pela manutenção da sua saúde, da longevidade e de seu bem-estar. Nessa visão, o controle das doenças não estaria subordinado apenas ao uso de determinados medicamentos ou a idas regulares ao médico, mas também ao comportamento adotado por cada um em relação à vida.
Mas as matérias da Folha centraram a responsabilidade nos profissionais médicos ou cientistas, como os principais sujeitos ou grupos capazes de solucionar ou dar as diretrizes para a solução da epidemia da obesidade. Os médicos sugerindo um diversificado leque de opções de tratamentos, e os cientistas (muitos são médicos também), a maioria da área de ciências biológicas, que no desenvolvimento de suas pesquisas cotidianamente têm gerado resultados que sugerem as possíveis causas da obesidade e seu tratamento, seja à base de medicamentos ou intervenção genética, ou outro tipo de tecnologia.
Ao longo do trabalho foi possível confirmar as hipóteses formuladas. De fato, a Folha de S. Paulo divulgou o tema com uma constância capaz de convencer o leitor de que a epidemia é uma realidade, um fato inquestionável, segundo a opinião das autoridades científicas e médicas. A obesidade é vista e tratada como doença/epidemia, mesmo que o veículo trate de aspectos variados sobre a questão – causas, consequências (efeitos físicos, psicológicos, econômicos), tratamentos, pesquisas, novos medicamentos, mercado. A grande maioria dos textos tratou da obesidade como doença (33,11%) e epidemia (17,7%). Em decorrência disso, os outros assuntos foram tratamentos e opiniões médicas a respeito da questão.
Entretanto, vale destacar que, em relação à epidemia da obesidade, há um “outro lado”, que também foi mostrado pela Folha de S. Paulo em suas matérias ao longo do período estudado. Trata-se de um conjunto de notícias e reportagens que desafiaram a corrente principal que alerta sobre o risco do aumento da obesidade no mundo. Neste bloco de notícias, o alerta é exatamente o contrário, para o alarmismo quanto ao que se diz sobre a epidemia, identificando-o com uma ideia de atendimento ao mercado, de preconceito contra uma condição que deve simplesmente ser aceita e que o é por muitos obesos que não se consideram doentes, levam uma vida normal, mas acreditam que devem ser mais respeitados em sua condição de seres humanos, cidadãos, profissionais.
Referências:
– Natalie C. Boero. “All the news that’s fat to print: The american ‘obesity epidemic’ and the media”Qualitative sociology 30 (2007): 1, 41-61.
– Dorothy Nelkin. Selling science: How the Press Covers Science and Technology, New York: W.H. Freeman and Co, 1987.
Obesidade Infantil, muitos pais deixam as crianças levarem uma dieta à base de fast food, frituras, refrigerantes e doces.