Entre o simples e o complexo: tecnologia e educação no ensino básico
Por Tel Amiel
Doutor em tecnologia educacional pela University of Georgia (EUA), pesquisador do Núcleo de Informática Aplicada à Educação (Nied) da Unicamp, co-coordenador de projetos de intercâmbio bi-nacionais focados em tecnologia, educação e cultura com enfoque no ensino básico (Capes) e coordenador do grupo de trabalho sobre Recursos Educacionais Abertos, da comunidade Educação Aberta.
A relação entre tecnologia e educação básica é permeada de grandes projetos e grandes decepções. Em nenhuma outra área da educação, passamos da euforia ao desapontamento em tão pouco tempo. Basta que uma reportagem ou programa de governo aponte os potenciais transformadores de um novo dispositivo, para que em alguns poucos anos, novas investigações solicitem prudência e cautela. É um ciclo que se repete há décadas. Desde a década de 1990, acompanhamos a promoção da criação de laboratórios de computadores em escolas públicas. Desde então, colecionamos histórias que relatam que os equipamentos chegam ao seu destino, mas ficam meses em suas caixas, por falta de infraestrutura, falta de apoio técnico, entraves políticos, entre outros fatores. A pergunta que fica, então, é: por que investimos tantos recursos orçamentários em grandes projetos de integração de tecnologia na educação básica se temos alcançado tão poucos resultados sistemáticos? As razões são várias 1, mas ressalto aqui três elementos, a partir da experiência brasileira. Antes, porém, algumas considerações.
Tomando como ponto de partida o tema desta edição da ComCiência e para efeito de argumentação, vou dividir a tecnologia educacional em tecnologia simples e complexa. Denomino de tecnologia simples a tecnologia como dispositivo: são os computadores, celulares, calculadoras e outros equipamentos utilizados por muitas pessoas no cotidiano. A tecnologia complexa, por sua vez, compreende todo o sistema de pessoas e recursos que se reúnem ao longo do tempo para que os dispositivos cheguem às mãos dos usuários, aliados às relações e condições que os sustentam.
Seguindo uma tendência mundial, o governo brasileiro investe crescentemente na integração de tecnologias em escolas públicas. Programas como Proinfo e TV Escola contemplam não somente infraestrutura e equipamentos, mas também formação de professores, gestores e produção de recursos didáticos. Felizmente, não há mais a noção pueril de que a simples entrega de computadores à escola vai transformar a prática escolar. Os investimentos de grande porte na educação básica são feitos na perspectiva de uma tecnologia complexa. Um exemplo mais recente é o programa UCA – Um Computador por Aluno –, que contemplou a compra de seiscentos mil laptops para uso em escolas públicas (Pregão 57/2010). Já temos na linha do horizonte o programa UTA – Um Tablet por Aluno –, pegando carona nos incentivos fiscais a empresas produtoras de tablets no Brasil. Outros projetos de grande porte acontecem por iniciativa de governos estaduais e municipais.
Raramente um projeto de grande escala é promovido com base em iniciativas anteriores bem sucedidas. Na maioria das vezes, a integração de tecnologias na educação é feita somente com base em seu “potencial” educativo e nas análises de impacto de curto prazo que, em geral, focam na relação entre o dispositivo e melhorias escolares ou aprendizado dos alunos. Como exemplo, projetos que fazem uso de laptops na educação tendem a ressaltar o crescente interesse dos alunos pela escola. Como consequência da introdução de laptops na sala de aula, alunos faltam menos e participam mais nas aulas. Essa relação simples e direta entre dispositivo e melhorias educacionais proporciona um elemento confortável para quem analisa, porém os resultados são de pouca utilidade prática. O interesse do aluno, quase sempre, é pelo dispositivo ao qual ele não tem acesso em casa. Mas se não for sustentado por práticas educacionais coerentes, o interesse é efêmero e pouco se relacionará aos objetivos educacionais propostos. Em educação, só existe tecnologia complexa. É aquela que não passa a esmo de entraves que historicamente rondam a relação entre mercado, políticas públicas, políticas educacionais e inovação tecnológica. Ignorar esses fatores é promover uma implementação roleta-russa. Não é surpreendente, portanto, que os problemas enfrentados pelos projetos de larga escala no ensino básico público se repitam: falta envolvimento dos atores escolares no planejamento e execução, existe pouco entendimento da real situação da rede escolar, a implementação raramente segue conforme planejado, e o uso efetivo no espaço educativo raramente segue o cenário imaginado por quem planejou o projeto. Como resultado, observamos um conjunto de problemas históricos recorrentes que testemunhamos nos projetos de grande escala no Brasil (Cysneiros, 2001; Sorj e Lissovsky, 2011).
Em outras palavras, pouco sabemos sobre a relação entre tecnologia e educação, porque apesar de entendermos que os projetos de larga escala se dão no âmbito da tecnologia complexa, sistematicamente promovemos e investigamos a tecnologia simples. Se os professores já sabem disso na prática, a filosofia já nos alertou há muito tempo que a essência da tecnologia não pode ser investigada partindo da tecnologia em si (Heidegger). Ocorre, então, um desalinho entre as nossas expectativas e o que a tecnologia pode proporcionar em seu enlace com a educação. Vamos, então, a três elementos que, julgo, contribuem para esse problema.
Primeiro, a integração de tecnologias na educação está emaranhada em um discurso que destaca o papel da educação como motor do desenvolvimento econômico. Apesar dos méritos inerentes à oferta de uma educação de qualidade para todos, não se pode ignorar que o desenvolvimento econômico depende de uma série de outros fatores (Cuban, 2004). A consequência de um discurso focado na escola é que esta adquire cada vez mais responsabilidades que vão muito além do que sua estrutura e equipe podem fazer com eficácia e coesão. O ciclo é pernicioso. A escola recebe recursos atrelados a demandas crescentes e quando, em curto espaço de tempo, não corresponde às novas expectativas, é considerada falha e faltante. Isolar a educação como um fator preponderante para melhoria econômica é ignorar as múltiplas barreiras à ascensão social, as incongruências da meritocracia que supervaloriza diplomas e credenciais, além da crescente competitividade na sociedade (Husen, 1986). Não surpreende, portanto, que pais cada vez mais busquem cursos de informática para seus filhos desde o ensino infantil, com vistas a um diferencial para o futuro mercado de trabalho. Essas incongruências nascem quando relacionamos o desenvolvimento econômico à educação, sem nos perguntarmos qual educação e qual desenvolvimento queremos. É nesse vácuo que se inserem os projetos de tecnologias educacionais que prometem preparar os alunos para o mercado de trabalho e promovem a ascensão social através de competências instrumentais com a tecnologia.
Segundo, é importante lembrar que a perspectiva de transformação da educação por meio da tecnologia acompanha o nascimento da escola pública (Cuban, 1986). Caminha junto com a ideia de que a escola precisa espelhar a sociedade e a “realidade dos alunos” que, em geral, é pouco compreendida por quem faz as políticas e promove (ou desenvolve) os dispositivos. Tecnologias sempre trouxeram a promessa de inovações educacionais; porém, organizações complexas, como escolas, tendem a incorporá-las de maneira a não modificar substancialmente seu modo de trabalho (Papert, 1997). Quando chegam às escolas, os recursos tecnológicos tendem a ser absorvidos e utilizados de maneira complementar ou suplementar às práticas já existentes. A reflexão de um educador nos anos 1950 já apresenta esse dilema:
“Projetores, televisores, fonógrafos e gravadores estão encontrando seu espaço em escolas e colégios americanos. Recursos audiovisuais podem suplementar ou suplantar palestras, demonstrações, e livros didáticos. Ao fazê-lo, eles podem servir para uma função exercida pelo professor: eles apresentam material ao aluno, e quando obtêm sucesso, o fazem com tanta clareza e de maneira tão interessante que os alunos aprendem. Há uma outra função para a qual eles contribuem pouco ou nada. Isso pode ser melhor evidenciado na troca que acontece entre professores e alunos em pequenos grupos ou tutoria. Muito dessa troca já foi sacrificada na educação americana para que se possa ensinar grupos numerosos de alunos. Há grande perigo de que essa troca seja completamente obscurecida se a prática de usar equipamento feito simplesmente para apresentar material se difundir. O aluno se torna cada vez mais um passivo receptor de instrução”, diz Skinner (1958, p. 969).
As transformações didáticas e melhorias de aprendizado que esperamos em sala de aula são dependentes das reformas que acontecem não só dentro da sala de aula, mas também das práticas regionais e nacionais. O sucesso da implementação de um laboratório de computadores em uma escola é tanto consequência das atitudes de um professor quanto da gestão que organiza o seu uso, e da política de Estado que determina seu financiamento e sustentabilidade. Ignorar esses fatores ou tomá-los como unidades isoladas e esperar resultados sofisticados nas práticas educacionais no prazo de alguns poucos anos é, no mínimo, ingênuo.
Terceiro, há um discurso que promove a necessidade de incluir sempre “novas” tecnologias na educação, partindo da perspectiva da exclusão social, digital, ou tecnológica. Prover acesso à internet atingiu o discurso da universalidade, levando em conta a importância da participação ativa do cidadão através dos canais digitais. É importante, no entanto, desvincular o acesso à internet como ferramenta de inclusão social ao seu necessário papel no processo de ensino e aprendizagem. No passado, tomando o caso dos Estados Unidos, discussões sobre equidade de acesso foram feitas para promover o acesso às calculadoras e à televisão a cabo nas escolas – grandes promessas para melhoria de aprendizado que trouxeram poucos resultados (Light, 2001). A tendência é que a escola esteja sempre em defasagem com relação às tecnologias disponíveis para uso pessoal, e isso não é necessariamente ruim (Amiel, 2006). O debate sobre a inclusão digital por meio da escola ainda preza a equidade de acesso e não a qualidade das atividades. É talvez por causa dessa assimetria entre os objetivos de prover acesso às novas tecnologias em detrimento da qualidade da experiência que não temos o mesmo afinco em promover o cinema 2 na educação e pouco se divulga sobre o seu impacto no aprendizado, apesar de seu enorme potencial educativo.
A inclusão de novas tecnologias na educação continua a seguir a máxima – já desgastada – da tecnologia instrumental que aqui categorizei como simples. É uma preocupação com o instrumento em detrimento do processo e dos fins a serem atingidos. Raramente vemos propostas de projetos que não explicitem claramente o dispositivo a ser utilizado, mesmo que, em princípio, uma gama de dispositivos possa ser utilizada para atingir um mesmo objetivo educacional. Para quem não sabe o que quer, qualquer dispositivo é viável. E para quem tudo quer, não há dispositivo que resolva. A exclusão digital não acontece por limitações de habilidades instrumentais que dependem de um só dispositivo. Aprender a usar o celular pode ser útil, mas é somente um objetivo inicial para quem está envolvido na educação. A tecnologia educacional deve ter como foco o desenvolvimento de uma fluência com o sistema tecnológico em si. Isso significa fazer uso e apreciar o desenvolvimento da digitalização, mídias, conectividade, entre outros temas, com clareza de propósitos e implicações. Ou seja, lucidez sobre toda a complexidade do sistema que o dispositivo carrega e acarreta. É certo que a tecnologia educacional não depende de um dispositivo específico para atingir os seus objetivos.
Não se pode negar que casos de sucesso existem. São vários os professores e escolas que fazem uso produtivo e criativo de tecnologias educacionais no âmbito de um projeto educativo condizente. Talvez os caminhos entre nossas expectativas e o que efetivamente acontece através do desenvolvimento tecnológico nunca se encontrem (Rescher, 1980). Mas podemos fazer com que essas linhas se aproximem, diminuindo nossas expectativas e reconhecendo que, seguindo a lógica dos projetos de larga escala já implementados no Brasil, devemos suspeitar de qualquer promessa de transformação de sistemas educacionais através da implementação de novas tecnologias.
Publicado originalmente no site ComCiência
http://www.comciencia.br/comciencia/
Esse professor é um dinossauro que só faz emperrar a educação brasileira com visões e dicotomias ultrapassadas. O Brasil atrasado é feito por catedráticos assim.