Por Denise da Costa Oliveira Siqueira
Doutora em comunicação pela ECA/USP. Professora da pós-graduação em comunicação da Uerj
A ciência, assim como a cultura e a sociedade nas quais se insere, está em constante construção – atravessa mudanças paradigmáticas, expressa preocupações, crises, anseios e discussões éticas da “comunidade científica”. Por isso, ciência é uma categoria muito boa para se pensar a sociedade, seus problemas, atores sociais, conflitos e, inclusive, seu futuro.
Embora grande parte dessas discussões não ultrapasse o universo acadêmico, em alguns casos – como o dos clones de animais, do uso de embriões humanos em pesquisas ou dos alimentos transgênicos – a sociedade acompanha o debate. Esse contato geralmente se dá por intermédio dos meios de comunicação de massa: jornais, revistas, televisão, rádio, computadores em rede, celulares.
Espaço simbólico rico em mediações, os meios de comunicação e seus produtos não devem ser tomados como puro entretenimento. O divertimento que promovem veicula valores, representações, visões de mundo, assim como reforça formas de pensar centradas, por vezes, no estereótipo e no preconceito. Dessa forma, meios de comunicação de forte apelo visual como a televisão – amplamente comercializados como formas de lazer – são, na realidade, constituídos pela veiculação intensa de informações publicitárias, jornalísticas, narrativas e, até, científicas e tecnológicas.
Ciência e tecnologia são temas que interessaram aos meios de comunicação de massa desde suas primeiras versões. Nem sempre no formato de divulgação científica – preocupada com conceitos e evitando distorções; mas como ficção científica ou como apelo noticioso-sensacional. Nesse sentido, até telenovelas brasileiras já trataram de clones e mutantes – é claro que no formato e com enredo de folhetim.
No formato jornalístico, o sensacionalismo configura-se um problema em matérias produzidas por jornalistas nem sempre afeitos ao discurso científico, com pouco tempo para produção em veículos que abrem espaço exíguo para uma edição cuidadosa e veiculação de assuntos que precisam de explicação.
Tais problemas, contudo, não desfazem as possibilidades dos meios. Mostram, de fato, que televisão e ciência envolvem esferas discursivas diferentes, mas que televisão e divulgação científica são termos que podem ser conjugados. Se com a especialização na área científica as pessoas “leigas” têm cada vez menos acesso às pesquisas recentes, os meios de comunicação de massa têm a possibilidade de promover a divulgação da ciência a um público vasto. Além disso, a televisão tem forte apelo visual, adota uma linguagem coloquial, um ritmo acelerado e a mistura de vários elementos que fazem do meio um espaço privilegiado na cultura contemporânea. Os recursos técnicos são inúmeros: gráficos, imagens filmadas e digitais, animações, entrevistas, depoimentos, falas de jornalistas intercaladas com de especialistas. E comodidade: na internet é preciso procurar informações. Na televisão, o espectador não procura: elas são dadas sem que se precise usar mecanismos de busca.
Por todos esses aspectos, a televisão tem amplas possibilidades educativas. Educação, formação são processos sociais e culturais, não cessam enquanto o indivíduo vive. Durante toda a vida, cada um se educa em contato com outras pessoas, fontes de referências, meios de comunicação de massa e, também, por meio da educação formal aplicada por escolas em todos os níveis – da educação infantil à pós-graduação. Olhando por esse prisma, considerar educação apenas como instrução formal seria reduzir todo o processo e minimizar o papel dos grupos sociais e das culturas na formação.
Assim entendendo, a programação dos meios de comunicação de massa também poderia ser considerada formadora: programas de entretenimento, jornalísticos, publicidade, divulgação científica. A questão a se propor é: educam para quê? Para um olhar crítico, cidadão, responsável sobre o espaço, a comunidade e os próprios meios de comunicação? Ou para o consumo e o desperdício? Ou ainda para se adotar determinados pontos de vista guiados por posições políticas e econômicas que atendem a interesses de poucos?
Autores como Jesús Martín Barbero (1997) entendem os meios de comunicação de massa, a televisão de forma especial, como tendo um importante papel na construção e reforço de representações. Os meios não determinam normativamente representações ou comportamentos, afinal, os sujeitos filtram, interpretam e ressignificam segundo outras lógicas os conteúdos dos programas. Contudo, ao lado da família, da escola, do trabalho, da igreja e de outras importantes instituições sociais, a televisão também opera nessas construções. Como tais instituições, a TV por si só não tem capacidade de mudar juízos. É importante contextualizar o universo cultural, informativo no qual o receptor, a audiência estão inseridos.
Tal espaço, um locus de costumes, crenças, concepções de mundo entre o meio de comunicação e o receptor, Barbero (1997) chama de mediação. Cada indivíduo possui filtros culturais diferentes que influenciam a maneira como recebe as mensagens dos mais variados meios.
Operando como uma instância de mediação, a divulgação científica pela televisão pode despertar a atenção para o discurso científico. Contudo, do ponto de vista da divulgação de ciências, o uso que se vem fazendo da televisão no Brasil ainda é problemático. Nos canais comerciais abertos a programação científica é quase inexistente. Programas de discussão sobre pesquisas, acerca do andamento de trabalhos científicos, enfim, sobre a ciência como construção e relacionada ao cotidiano são incomuns. Existem programas do gênero Globo Repórter e Fantástico com matérias, em geral, pouco explicativas, muito afirmativas e, muito freqüentemente, de caráter sensacional. Esses, pouco contribuem para o esclarecimento porque além de não terem objetivo formador, educativo, atingem, em grande parte, um público com pouco acesso a outras mediações que traduzam criticamente aquilo que é veiculado. Juntam-se dois problemas de ordens distintas: a falta de intenção de informar sem distorcer e a falta de acesso a outras fontes de informação que possibilitem à audiência conferir a informação assistida.
Em termos de conteúdo, os programas não voltados para a divulgação científica, mas que se referem à ciência mesmo assim, tendem a apresentar uma espécie de ruptura entre conhecimento científico e suas inter-relações com o conhecimento escolar e o conhecimento cotidiano. Além disso, trabalham com a idéia reduzida da ciência como aquela produzida em laboratórios tecnológicos. Campos de conhecimento ligados às ciências humanas e sociais não são privilegiados.
A programação televisiva voltada para o público jovem e infantil não foge a essa lógica. A maior parte das animações e programas voltados para as crianças submete-se somente ao caráter de espetáculo, de atrativo. Novas tecnologias são introduzidas, mas a violência, o vocabulário vulgar, a competição e o consumo são incitados. Além disso, artistas, cientistas, professores, idosos, estudiosos são amplamente divulgados de modo estereotipado. Exemplos de cientistas excêntricos em animações recentes estão em desenhos como Jimmy Neutron, o menino gênio, O laboratório de Dexter e no professor Utônio, de As meninas superpoderosas – animações de televisão que geraram linhas de produtos: mochilas, camisetas, estojos, lancheiras, tênis – originais e copiados.
A força discursiva desses estereótipos é tal que em oposição a muitos canais que exibem programação despreocupada com a violência, com a linguagem vulgar e com os temas abordados – mais apropriados para adultos –, surgem canais voltados exclusivamente para a programação dita “educativa”, atentos ao desenvolvimento e à formação de crianças e adolescentes. Alguns são públicos, como TV Cultura, de São Paulo, e outros, como o Discovery Kids, da TV paga, são comerciais.
Esse tipo de iniciativa parece resistir à cultura de massa, mas um olhar atento capta que são os meios de comunicação mostrando-se culturalmente híbridos ao mesmo tempo em que é a própria indústria segmentando-se, abrindo espaço para “produtos” diferenciados – nesse caso, interessados e comprometidos com conteúdos apropriados para o público jovem.
Ainda no plano do conteúdo, e fazendo uma breve reflexão epistemológica, o interesse torna-se uma questão muito importante relativa à divulgação científica pela televisão. O filósofo alemão Jürgen Habermas (1987) ao desenvolver a “teoria dos interesses cognitivos”, mostrou o conhecimento e os interesses como uma unidade indissolúvel para as múltiplas ciências. Habermas procurou mostrar que uma ciência neutra é uma exigência que não resiste a um exame crítico.
No texto “O campo científico”, Pierre Bourdieu também discutiu a questão da não-neutralidade e do interesse ao escrever que a ideia de uma ciência neutra” é uma ficção interessada” (1994, p.148). Em uma crítica incisiva, Bourdieu parte do princípio de que “O universo ‘puro’ da mais ‘pura ciência’ é um campo social, como outro qualquer, com suas relações de força e monopólios, suas lutas e estratégias, seus interesses e lucros” (1994, p.122).
Ora, se toda ciência é interessada, a divulgação científica também refletiria interesses. E se a ciência não pode pretender ser neutra, a divulgação científica tampouco pode querer difundir uma ciência neutra. Então, que interesses poderiam ser esses? Enquanto para Habermas o interesse por trás do conhecimento científico situa-se na busca da emancipação e da compreensão mútua, para Bourdieu esse interesse tem um sentido político.
Aproximando essa visão da questão da divulgação científica pela televisão, observa-se que em programas educativos, oriundos, por exemplo, de instituições universitárias ou canais públicos, haveria algum “interesse” emancipatório, em outros programas, no entanto, esse não seria o interesse. Além disso, a idéia de neutralidade impossível não é transmitida por todos os programas que veiculam informações ou representações de ciência.
Longe de desfazer o meio televisivo, esses são motivos para se pensar que a divulgação científica é ainda mais necessária pela televisão. Todo tipo de assunto e tema é abordado pela televisão e seus programas. A ciência não poderia ser deixada de lado.
Comunicar a ciência pela televisão é uma forma de dar respostas à sociedade que, afinal de contas, financia a pesquisa e para quem seus resultados precisam ser mostrados. Mas a televisão exige adaptações a seu formato que precisam ser realizadas com atenção para que o que se divulga seja o que a ciência conclui mais do que as representações sobre esse discurso que os profissionais do meio de comunicação constroem.
Referências
BARBERO, Jesús Martin. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 1997.
BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: Bourdieu – sociologia. São Paulo: Ática. p.46-81, 1983.
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. A ciência na televisão: mito, ritual e espetáculo. São Paulo: Annablume, 1999.
______. O cientista na animação televisiva: discurso, poder e representações sociais. Em questão, v. 12, n.1. Porto Alegre: UFRGS, jan-jun 2006, p.131-148.
Artigo originalmente publicado no site ComCiência – Revista Eletrônica de Jornalismo entífico
http://www.comciencia.br/comciencia/