“As crianças e jovens de gerações atuais são mais ou menos inteligentes, atentos, capazes de memorizar, do que as de gerações anteriores? Essa é uma boa pergunta para os neurocientistas”, destaca Leonor Bezerra Guerra.
Por Marcus Tavares
Leonor Bezerra Guerra é médica. Mestre e doutora em Ciências e especialista em neuropsicologia. Professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ela coordena o projeto O cérebro vai à escola: um diálogo entre a neurociência e a educação. Trata-se de uma das ações do projeto NeuroEduca, que tem o objetivo de divulgar, informar, orientar e acompanhar profissionais da área de educação sobre conceitos básicos da neurociência relevantes para a compreensão do processo ensino-aprendizagem e das intervenções neste processo.
“Conhecer a organização do cérebro, suas funções, períodos críticos, as habilidades cognitivas e emocionais, as potencialidades e limitações do sistema nervoso pode tornar o trabalho do educador mais significativo e eficiente, contribuindo para o seu entendimento sobre as dificuldades de aprendizagem e para sua orientação em relação às intervenções”, destaca Leonor.
Mas em que medida a mídia impacta o funcionamento do cérebro das crianças e dos jovens, da chamada geração multitarefa, Google, web 2.0? Este foi o foco da entrevista que a revistapontocom realizou com a professora Leonor.
Acompanhe e descubra:
revistapontocom – O que é neuropsicologia?
Leonor Bezerra Guerra – A neuropsicologia é a ciência que estuda a relação entre o cérebro e o comportamento humano. Tem como objetivo estudar e compreender o comportamento humano considerando o funcionamento das diversas estruturas e áreas do sistema nervoso. Ela estuda as funções corticais superiores, como a atenção, a memória, a linguagem, o raciocínio lógico-matemático, a percepção visual, as funções executivas, entre outras funções cognitivas. A neuropsicologia considera “a participação do cérebro nessas funções mentais como um todo, no qual as áreas são interdependentes e inter-relacionadas, funcionando comparativamente a uma orquestra, que depende da integração de seus componentes para realizar um concerto”. Como área específica de estudo, a neuropsicologia tem um desenvolvimento relativamente recente, embora sua fundamentação científica seja resultante de várias décadas de conhecimento e investigação. Desde a antiguidade já se observava que lesões na cabeça produziam alterações do comportamento. Ao longo da história das neurociências, vários estudiosos contribuíram para a constatação de que o comportamento humano tem como substrato biológico o sistema nervoso. Nos séculos XIX e XX, principalmente a partir das décadas de 40 e 50, esses estudos se desenvolveram bastante. Após os anos 90, da chamada Década do Cérebro, os avanços tecnológicos possibilitaram os estudos de neuroimagem associados ao comportamento, o desenvolvimento de técnicas de reabilitação e a divulgação científica por meio de diversas mídias. Esses fatores, associados ao aumento da formação e capacitação de psicólogos na área, são fatores que promoveram uma maior visibilidade da neuropsicologia como se observa hoje. Embora estudada há vários anos, a neuropsicologia é uma área que tem se beneficiado dos avanços recentes das neurociências, das ciências que estudam o sistema nervoso, em particular, o cérebro.
Saiba mais
Mäder, Maria Joana. Avaliação neuropsicológica: aspectos históricos e situação atual.
Psicologia: ciência e profissão, v.16, n.3, p.12-18, 1996.
revistapontocom – O que a neuropsicologia tem a ver com o dia a dia das crianças, dos jovens e da escola? Que contribuições ela traz para a escola/família?
Leonor Bezerra Guerra – Conhecendo-se o desenvolvimento e o funcionamento normais do cérebro pode-se compreender alterações cerebrais, como no caso de disfunções cognitivas e do comportamento resultantes de lesões, doenças ou desenvolvimento anormal do cérebro. Dessa forma, a abordagem das dificuldades de aprendizagem pode ter uma contribuição importante da neuropsicologia. Por meio da avaliação neuropsicológica é possível ter uma ideia das habilidades do aprendiz, verificando se seu desempenho em tarefas que dependem de funções como atenção, memória, linguagem, raciocínio lógico-matemático, percepção visual, funções executivas, entre outras, é similar ao da maioria dos indivíduos ou se há uma diferença no seu desempenho. Havendo uma diferença, o profissional irá tanto investigar as possíveis causas do problema, como propor uma intervenção terapêutica. Importante ressaltar que há muitos outros importantes fatores que podem levar às dificuldades para a aprendizagem, como deficiências nutricionais, visuais e/ou auditivas, problemas respiratórios, falta de períodos de sono, ambiente familiar, situação social, adaptação à escola, estratégias pedagógicas inadequadas, etc. Todos eles devem ser investigados. A avaliação neuropsicológica, bem como a neurológica, não são as “respostas definitivas para qualquer dificuldade para aprendizagem”, mas são avaliações muito importantes para exclusão ou confirmação de hipóteses diagnósticas. Sabendo se o cérebro da criança ou jovem está funcionando, ou não, dentro do esperado para sua idade, por meio da avaliação de suas funções cognitivas, a escola, a família e a equipe multidisciplinar que abordam a dificuldade para aprendizagem podem orientar estratégias de encaminhamento ou intervenção terapêutica adequada a cada caso.
revistapontocom – O que as pesquisas da área vêm revelando sobre a plasticidade dos cérebros das atuais gerações de crianças e jovens?
Leonor Bezerra Guerra – Neuroplasticidade é a propriedade de “fazer e desfazer” conexões entre neurônios. Ela depende de sinais elétricos desencadeados por estímulos ambientais nas células nervosas e de substâncias químicas produzidas pelos neurônios, e possibilita a reorganização da estrutura do sistema nervoso e do cérebro, constituindo a base biológica da aprendizagem e do esquecimento. Não conheço nenhum estudo que tenha avaliado a relação entre funções cognitivas e exposição a novas tecnologias e que demonstre aumento ou diminuição da plasticidade neural nas novas gerações, expostas a alguns estímulos diferentes de gerações passadas. O que ocorre é que diferentes estímulos levam ao aprimoramento ou à perda de diferentes habilidades. O fato é que preservamos as sinapses e, portanto, redes neurais, relacionadas aos comportamentos importantes para nossa sobrevivência. Aprendemos o que é significativo e necessário para vivermos bem e esquecemos aquilo que não tem mais relevância para o nosso viver.
revistapontocom – A plasticidade do cérebro humano está em transformação? Isto é um fenômeno recente? Isto seria positivo ou negativo?
Leonor Bezerra Guerra – A plasticidade do cérebro humano é uma propriedade característica das células nervosas que resulta na reorganização das conexões entre os neurônios conforme os estímulos ambientais recebidos. Portanto “não é um fenômeno recente” e sempre existiu no ser humano desde o seu aparecimento na escala evolutiva, bem como em outros animais. Mas só nas últimas décadas é que a ciência descobriu e esclareceu o fenômeno. Não há nenhum dado na literatura científica que demonstre que a propriedade de neuroplasticidade está em transformação. Ela é influenciada pelos estímulos que recebemos do ambiente. Somos expostos a alguns estímulos e privados de outros e, assim, os estímulos vão moldando nosso cérebro. Usualmente se diz que neuroplasticidade é reorganização cerebral e é a base biológica da aprendizagem. Esta reorganização do cérebro, com formação de novas conexões entre neurônios (sinapses) e perda de outras, é que produz novos comportamentos (conhecimentos, habilidades, atitudes). Portanto, neuroplasticidade é um fenômeno positivo. Sem ela o ser humano não aprenderia.
revistapontocom – Mas em que medida o mundo midiático de hoje (televisão, cinema, celulares, games…) impacta o sistema neural das crianças e dos jovens?
Leonor Bezerra Guerra – As crianças e jovens de gerações atuais são mais ou menos inteligentes, atentos, capazes de memorizar, do que as de gerações anteriores? Essa é uma boa pergunta para os neurocientistas. Não sabemos, ainda. Mas provavelmente elas apresentam diferenças em alguns aspectos de suas funções cognitivas. Há pesquisadores interessados nos resultados da influência do “mundo midiático atual” sobre o comportamento humano, mas ainda não há dados consistentes. É provável que a exposição maior a informações visuais e auditivas em detrimento de informações verbais escritas venha a diminuir as habilidades de linguagem escrita do ser humano e ampliar as habilidades visuais, por exemplo. Pode ser também que a menor interação “corpo a corpo” entre os seres humanos, que agora se comunicam virtualmente, modifique suas habilidades de interação social. Mas não temos, ainda, estudos que comprovem essas mudanças porque esse “mundo midiático de hoje” é relativamente recente. O modo como vivemos, sem dúvida, altera, aos poucos, a estrutura e o funcionamento de nosso cérebro e, portanto o nosso comportamento.
Saiba mais
Vandewater, E. et. al. Digital Childhood: Electronic Media and Technology Use Among Infants, Toddlers, and Preschoolers.
Pediatrics, v.119, n.5, p.e-106-e1015, 2007.
revistapontocom – Podemos afirmar que o impacto do mundo midiático está diretamente associado à área da criatividade das crianças e dos jovens?
Leonor Bezerra Guerra – Afirmações categóricas em ciências não são muito prudentes. O cérebro não possui uma “área da criatividade”. A criatividade depende de diferentes substâncias químicas (neurotransmissores) e áreas do cérebro: áreas relacionadas às percepções, análises dos contextos e atribuições de significados, áreas que comparam experiências anteriores com estímulos novos, áreas que possibilitam formas diferentes de organizar esquemas mentais já registrados, entre outras. Portanto, a criatividade está relacionada ao desenvolvimento de várias regiões cerebrais e ao funcionamento do cérebro como um todo. As diferentes mídias, teoricamente, devido ao seu potencial de estimulação das vias sensoriais, podem contribuir para as modificações de distintas áreas cerebrais relacionadas às percepções auditivas e visuais e aos mecanismos de atenção e memória, por exemplo. Mas ainda serão necessários estudos que avaliem a influência dos diferentes tipos de mídia sobre as funções cerebrais. As neurociências estão contribuindo para o esclarecimento de várias funções cerebrais. Mas estudos em seres humanos envolvem aspectos éticos e algumas dificuldades relacionadas aos métodos, ou seja, a como investigar criteriosamente o assunto. Por isso não temos, ainda, respostas para várias perguntas que nos inquietam. Mas são exatamente as perguntas, a incerteza, que impulsionam a ciência.
revistapontocom – Por que nos dias de hoje se atribui tanto valor, status e poder ao cérebro humano?
Leonor Bezerra Guerra – O cérebro sempre foi um órgão muito importante. Ele e outras estruturas do Sistema Nervoso constituem o sistema orgânico que possibilita a interação do ser humano com o meio em que vive. É o Sistema Nervoso que processa os estímulos do ambiente e produz comportamentos que garantem a sobrevivência do indivíduo e a preservação da espécie. Mas a ciência só desenvolveu métodos para estudo mais aprofundado sobre os neurônios, neurotransmissores e o cérebro a partir do início do século XX. A tecnologia digital, os avanços da genética, da biologia molecular, da farmacologia e da eletrofisiologia, entre outras áreas, contribuíram muito para os estudos das neurociências. No entanto, a pesquisa na área tem limitações metodológicas e éticas que dificultam a abordagem de algumas questões, já que há comportamentos do homem que animais de experimentação não apresentam. Portanto, o cérebro sempre teve valor, nós é que não sabíamos explicar o seu funcionamento. Conhecendo, valorizamos. E mesmo com todo o avanço das neurociências, ainda há muito o que se descobrir e esclarecer sobre o cérebro e o comportamento humano.
revistapontocom – Em que consiste o projeto O Cérebro vai à Escola?
Leonor Bezerra Guerra – O “Cérebro vai à Escola: um diálogo entre a neurociência e a educação” é uma das ações do projeto NeuroEduca. O projeto pretende divulgar, informar, orientar e acompanhar profissionais da área de educação sobre conceitos básicos da neurociência relevantes para a compreensão do processo ensino-aprendizagem e das intervenções neste processo. O projeto é desenvolvido com o apoio da Universidade Federal de Minas Gerais. Buscamos a melhoria da qualificação do profissional da educação em relação à compreensão do processo ensino-aprendizagem e suas intervenções, com contribuição para mudanças na prática do dia-a-dia do professor; melhoria do desempenho e evolução dos alunos. Em nossas palestras, capacitações e curso de atualização (www.fundep.ufmg.br em cursos – educação), abertos a educadores em geral, incluindo pais, abordamos temas como: contribuições das neurociências para a educação; divulgação científica e a neurociência na educação; como o cérebro funciona no processo ensino-aprendizagem; períodos receptivos do desenvolvimento cerebral; sono, atenção, memória, emoção e função executiva no processo ensino-aprendizagem, exame neurológico, afecções neurológicas, avaliação neuropsicológica, transtornos de aprendizagem, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade. Consideramos que educar é promover a aquisição de novos comportamentos e que as estratégias pedagógicas utilizadas pelo educador no processo ensino-aprendizagem são estímulos que levam à reorganização do sistema nervoso em desenvolvimento, o que produz as mudanças comportamentais. O educador está cotidianamente atuando nas transformações neurobiológicas que levam à aprendizagem. Conhecer a organização do cérebro, suas funções, períodos críticos, as habilidades cognitivas e emocionais, as potencialidades e limitações do sistema nervoso poderia tornar o trabalho do educador mais significativo e eficiente, contribuindo para o seu entendimento sobre as dificuldades de aprendizagem e para sua orientação em relação às intervenções.
Saiba mais sobre o curso
O curso o Cérebro vai à escola: um diálogo entre a neurociência e a educação propicia aos participantes a oportunidade de conhecer, de forma sintética, alguns aspectos do funcionamento do cérebro durante o processo ensino-aprendizagem e, assim, compreender e discutir questões importantes relacionadas ao trabalho do educador no processo de aprendizagem. Por que o estudante tem dificuldade para se concentrar? Por que os estudantes estão desinteressados? Por que eles esquecem os conteúdos de um ano para outro? Dormir ajuda a aprender? Por que os adolescentes trocam o dia pela noite? Ter aulas é o que nos faz aprender? Lazer ajuda a aprender? Pensar cansa? Por que é verdade que “é de cedo que se torce o pepino”? Quando é melhor aprender uma segunda língua? Quando não aprendemos o problema está sempre no cérebro? Esses, entre outros, serão temas do curso que visa, assim, estabelecer as relações entre a organização morfofuncional do sistema nervoso central e as funções cognitivas envolvidas no processo ensino-aprendizagem.
Ementa
Aspectos estruturais, funcionais e clínicos do sistema nervoso central numa perspectiva neuropsicológica com vistas ao entendimento dos processos de desenvolvimento e aprendizagem.Programa
. Introdução às dificuldades para aprendizagem;
. Contribuições das neurociências para a educação;
. Divulgação científica e as neurociências na educação;
. Como o cérebro funciona no processo de aprendizagem;
. Organização geral morfofuncional do sistema nervoso central;
. Desenvolvimento do sistema nervoso;
. Córtex cerebral e sistemas funcionais;
. Sono e aprendizagem
. Funções cognitivas: atenção e memória, emoção, função executiva;
. Fundamentos do exame neurológico;
. Fundamentos da avaliação neuropsicológica;
. Transtornos de aprendizagem;
. Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade.
O perigo é confundir teoria com realidade… Por mais que uma teoria seja interessante, continua sendo uma representação da realidade, nada mais que isso. O Prof. Pierluigi Piazzi tem também boas teorias sobre o assunto. Quem sabe não fosse proveitoso ver o que ele sintetizou durante sua vida? O youtube tem algumas palestras dele…
Como cientistas, nossa maior meta é buscar melhores teorias, criando, destruindo e aperfeiçoando – o que for mais apropriado.Boa sorte a todos no processo de evolução teórica!
Matéria, muito pertinente, pois nunca é demais lembrar a platicidade do cérebro.que
permite a perda de antigas conexões e abertura a novos circuitos. A neurociência sem dúvida vem contribuindo para um melhor entendimento dos mecanismos mentais. No entanto o funcionamento mental não se reduz aos mecanismos cerebrais.
A matéria é muito oportuna pois , como psicopedagoga, vejo a importância da neurociência
para compreensão do processo de ensino/aprendizagem. Esta semana participei de uma palestra na UNIVERT (universidade da 3ª idade ) proferida pelo professor e psicopedagogo Renato Beranger sobre as semelhanças do cérebro e o computador. É um assunto bastante interessante e atual.
Um sucesso !!!!