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Esse Rio é Meu: curso de capacitação para professores conta com palestra da promotora Lívia Sant’Anna Vaz sobre educação antirracista e racismo ambiental

"Racismo é um elemento central, um fator determinante das nossas vidas e da nossa democracia no Brasil".

Por Marcus Tavares

Nomeada como uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo (Most Influential People of African Descent, Law Justice Edition), a promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, a Dra. Lívia Sant’Anna Vaz ministrou, na última semana, uma palestra, online, de capacitação sobre Educação antirracista e racismo ambiental para os professores da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro que participam do programa Esse Rio é Meu.

O programa Esse Rio é Meu é desenvolvido em conjunto pela Secretaria Municipal de Educação e pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente da Prefeitura do Rio, em parceria com a oscip planetapontocom e a concessionária Águas do Rio – patrocinadora do programa. O objetivo do programa é engajar escolas na recuperação e preservação dos rios. Cada grupo de escolas da rede pública de ensino do Rio ficou responsável por desenvolver ações em torno de um dos corpos hídricos da cidade.

Doutora em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia e especialista em Estudos Afro-latino-americanos e Caribenhos pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso), Lívia iniciou sua apresentação com a fala da escritora Grada Kilomba: “Uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Uma mulher branca diz que é uma mulher. Um homem branco diz que é uma pessoa”.

Na avaliação de Lívia, uma mulher negra precisa se identificar em termos de raça e gênero para, ao menos, buscar e ou promover seus direitos fundamentais. Já uma mulher branca diz que é uma mulher, pois, numa sociedade racista, a mulher branca é o padrão, a normalidade. Daí a importância de falarmos em ‘mulheres’ no plural, na diversidade com inclusão. O homem branco diz que é uma pessoa, pois ele é o padrão que entendemos, inclusive, como o sujeito universal. O homem branco vai reunir as características hegemônicas de acesso ao exercício do poder na sociedade, que é um poder colonial, e por isso vai determinar os caminhos e o acessos de outros grupos vulnerabilizados, como mulheres, mulheres negras, negros. Esse exclusivismo da branquitude masculina, diz Lívia, se opera também na construção, acesso, interpretação e aplicação dos direitos e da legislação.

A promotora cita, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. De acordo com ela, os artigos dizem que ‘toda a pessoa humana’ tem direito a saúde, educação e liberdade. No entanto, segundo Lívia, cometemos um equívoco muito repetitivo de não contextualizar os fatos, os documentos. “Em 1948, praticamente todos os países africanos colonizados estavam ainda sob o julgo colonial. Será que esta declaração se aplicava a todos? Afinal, quem é essa ‘pessoa humana’?”, indaga.

Com o objetivo de promover outras reflexões, Lívia traz outras legislações, como a Constituição Haitiana, de 1805, “um documento de direitos humanos importante, resultado da luta de pessoas negras africanas escravizadas no Haiti, colônia francesa. O documento vai declarar independência ao exército francês e a abolição da escravidão para sempre”; a Carta Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos, que traz o princípio de reciprocidade, já em1981, e a Carta Mandinga, de 1235. Transmitido de geração em geração pelo povo mandiga através da oralidade, o documento já estabelecia os direitos humanos: proteção à vida, equidade, fraternidade, concepção de responsabilidade coletiva pela criança e a valorização das mulheres. Atualmente, a carta está transcrita pela Unesco e é considerada um patrimônio da humanidade.

Ao apresentar tais documentos, Lívia quis deixar claro que “os direitos humanos não são exclusividade ou monopólio da Europa ou dos EUA. Ainda temos um ensino muito colonial, voltado para a história e para a centralidade das ditas nações desenvolvidas, [voltado] para o protótipo do ser universal que é o homem branco”, destaca.

Em seguida, Lívia traça uma historiografia da questão racial na ordem jurídica brasileira. Para ela, comparar a história racial brasileira com a dos EUA e ou da África do Sul não faz sentido, como também defender a ideia de que o Brasil construiu uma democracia racial.

Ao resgatar a história da escravidão no país, a promotora traz dados já conhecidos, mas impactantes, como a de que o país foi o último do ocidente a declarar abolida a escravidão, que mais de 40% dos 12 milhões de africanos que chegaram à América desembarcaram no Brasil, que o Rio de Janeiro foi a cidade que mais recebeu pessoas africanas escravizadas no mundo e que o Cais do Valongo foi o maior portal de entrada de pessoas africanas escravizadas – cerca de 1 milhão.

A promotora afirma que a escravização é um fenômeno antigo da sociedade. A diferença é que as pessoas escravizadas faziam parte da organização social do seu tempo. Segundo ela, há duas diferenças básicas entre a escravização antiga e a dita moderna, transatlântica: a raça, as pessoas passam a ser escravizadas por conta da raça, e a comercialização, as pessoas não compõem mais a organização social, são objetos.

Das ordenações Filipinas (1603-1830) passando pela Lei do Ventre Livre (1871), até a Lei Áurea (1888), Lívia apresenta insumos e curiosidades para entender o processo de racismo brasileiro. Numa segunda etapa, mostra fatos e direcionamentos que visavam o processo de embranquecimento da sociedade como também a criminalização do povo negro, com a criação do Código Criminal, em 1890.

Em sua apresentação, Lívia traz à tona o caso da abolicionista e ativista dos direitos das mulheres afro-americanas Sojourner Truth, que se tornou a primeira mulher negra e escravizada a ganhar um caso contra um homem branco. Cita o seu discurso célebre, em 1851, “E eu não sou uma mulher?”.

“Há pessoas no nosso país e no mundo que detêm o poder e preferem ver o seu copo transbordar do que permitir que grupos vulnerabilizados, e não vulneráveis, como pessoas negras, quilombolas, indígenas, ribeirinhas, LGBTQIA+, com deficiência, podem, ao menos, completar a sua medida no copo”, frisa em referência ao discurso de Sojourner.

Para Livia, não é possível olhar a sociedade brasileira em fatias. Há diversos e diferentes fatores que se entrecruzam e se retroalimentam. “Raça informa gênero que informa classe e vice-versa”. Livia afirma a importância de se compreender e trabalhar com o conceito de interseccionalidade, “categoria analítica que nos possibilita compreender essa complexidade”, destaca.

Neste contexto, a promotora apresenta, explica e dimensiona o racismo estrutural, institucional, cultural e o algorítmico, que já se faz presente, por exemplo, nas políticas de segurança pública por meio do reconhecimento facial por IA, sem que haja nenhuma discussão prévia sobre esse tipo de racismo.

E, por fim, não menos importante, trata da questão do racismo ambiental. Ela resgata que a noção de justiça ambiental começa nas décadas de 1970/1980 nos EUA, quando parte da população começa a denunciar o despejo de lixo tóxico em áreas residenciais negras.

Informa que, em 1983, pesquisa da US General Accouting Office revela que de cada quatro aterros sanitários tóxicos nos EUA, três são instalados em comunidades afro-americanas que representam apenas 20% da população americana. E que, em 1987, o relatório Toxic Wastes and Race aponta que a raça é a principal variável para a escolha dos aterros, à frente da pobreza e do valor da terra.

Segundo Lívia é possível concluir que manifestações concretas, talvez não intencionais, do racismo determinam as condições ambientais a que são submetidos grupos étnico-raciais vulnerabilizados. Que há uma exposição desproporcional desses grupos a riscos ambientais e um acesso desigual desses mesmos grupos a recursos e bens ambientais.

Chama também a atenção de que há uma exclusão das comunidades vulnerabilizadas dos espaços decisórios e de controle social das decisões ambientais. As comunidades devem ser ouvidas, consultadas. Para Lívia, o racismo ambiental “determina heteronomamente o espaço e o modo de vida dessas comunidades, afetando sua liberdade e autonomia” e acaba provocando a “deteriorização das condições de sobrevivência material e imaterial dessas comunidades”.

Termina sua apresentação destacando um trecho da Carta Mundial pelo Direto à Cidade, elaborada no Fórum Social Mundial, de 2005, em Porto Alegre: o direito à cidade é o : “usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia e justiça social. É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos que lhes confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito à livre autodeterminação e a um padrão de vida adequado”.

Para Lívia, o encontro com os professores é importante e valioso. “Essa troca é fundamental para que a gente possa seguir caminhando em busca de uma sociedade mais justa, igualitária e democrática que leve em consideração uma construção coletiva. Racismo é um elemento central, um fator determinante das nossas vidas e da nossa democracia no Brasil. A sua complexidade faz com que precisemos realmente de um letramento racial antirracista em todos os espaços. E a educação antirracista faz parte deste caminhar tão importante que precisamos estabelecer coletivamente”, finaliza.

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