Por Mariana Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública
Foram quase dois anos de preparação para a Agência Pública receber nesta semana uma turma de formação em jornalismo investigativo. Se valeu a pena, Tumi Matis, Puré Juma, Helena Corezomaé, Cocokaroti Metuktire, Maikson Serrão e Yolis Lión poderão dizer neste próximo domingo. De nosso lado, o aprendizado, as surpresas positivas e a fé na qualidade dos trabalhos que virão dali têm superado as expectativas.
A ideia de oferecer oficinas de formação para jornalistas e comunicadores de povos originários veio depois de 18 meses de trabalho com dez microbolsistas indígenas no moldes do programa que fazemos desde 2012 para dar oportunidade a jornalistas de realizar sua “pauta dos sonhos” – até o ano passado, foram 83 microbolsas ofertadas. Mas o programa para os indígenas começou dez anos depois, em 2022.
Vou contar como eles entraram nessa história. Como nossa equipe produz muitas reportagens sobre a questão indígena e tem uma rede de contatos nas aldeias, em 2019 recebi um zap de um jovem da Terra Indígena Ituna/Itatá, a mais desmatada naquele primeiro ano de governo Bolsonaro, perguntando se ele poderia se inscrever em um de nossos concursos de microbolsas.
“Moro na terra indígena mais desmatada do Brasil”, escreveu, reforçando a importância de participar. “Mas não sou jornalista”, explicou.
Perguntei se ele já tinha feito alguma reportagem antes – afinal, o programa de microbolsas até então era dedicado apenas a profissionais de jornalismo. Além disso, a experiência como repórter, o risco para a segurança do profissional e a viabilidade da pauta estavam entre nossos critérios de seleção. Nos três quesitos, a proposta não se encaixava.
Por outro lado, o pedido era tão justo que prometi pensar em um projeto específico, adequado à realidade dos comunicadores indígenas – que nem sempre têm experiência em jornalismo, correm riscos ao fazer denúncias, sobretudo se vivem no território, mas desempenham um papel informativo importante dentro de comunidades e associações.
A diretoria da Pública abraçou o desafio com entusiasmo. Sabíamos que teríamos um aliado fundamental para elaborar esse projeto, o que o tornava mais viável: o jornalista e doutor em antropologia Spensy Pimentel, amigo de longa data e editor da primeira grande investigação socioambiental que realizamos, o “Amazônia Pública”, de 2012.
Spensy é coordenador do curso de jornalismo da Universidade Federal do Sul da Bahia, onde o sistema de cotas facilitou o ingresso de estudantes indígenas daquela região. Também é convidado frequente dos congressos de jornalismo, em que orienta os profissionais que cobrem o tema – quase 100% não indígenas e sem conhecimento da complexidade de culturas e realidades. Uma ponte entre muitos mundos.
Nosso amigo se empolgou de imediato, e depois de meses de trabalho, que envolveu o empenho de muita gente da Pública, conseguimos realizar o primeiro concurso de microbolsas para comunicadores indígenas, com cinco selecionados em 2022 e mais cinco premiados em 2023. Apesar das dificuldades vividas no decorrer desse período – de barreiras culturais a distâncias gigantes e ameaças no território –, quase todos os trabalhos foram publicados (um foi retirado do ar a pedido do autor, que foi ameaçado, e o outro não pôde ser concluído por dificuldades logísticas).
A partir do que aprendemos nessa experiência, decidimos avançar um passo, ou, como prefere o Spensy, recuar para uma primeira etapa, e assim aprimorar o processo de aprendizado mútuo: antes de sair para realizar as pautas, teríamos oficinas presenciais de uma semana para os seis microbolsistas selecionados – três homens e três mulheres de idades e regiões diferentes – na sede da Pública, em São Paulo.
Ministradas por profissionais da Pública e parceiros na área do direito, da documentação audiovisual e da segurança digital, as oficinas, que começaram na segunda-feira, têm como objetivo afinar pautas e métodos antes do processo de apuração das reportagens, quando mentores e indígenas trabalharão juntos até a publicação dos trabalhos em nosso site.
Em resumo: se as primeiras reportagens são como “gritos de socorro” de comunidades indígenas, a intenção agora é que eles se apropriem das técnicas do jornalismo investigativo para qualificar as denúncias, apontando responsáveis e cobrando o poder público assentados em bases sólidas: evidências, dados, depoimentos, documentos.
Ainda tem muita água para rolar debaixo dessas pontes, mas o certo é que essa turma já tem nos ensinado muito sobre resistência cultural, racismo, estereótipos e outras violências e nos presenteado todos os dias com novos olhares – e uma curiosidade infinita – sobre autonomia indígena e o jornalismo como ferramenta de justiça social e conhecimento.
Também aprendemos muito sobre o valor da convivência solidária – não apenas em relação a nós, “brancos”, mas entre eles. Afinal, a mesma sala de aula reune indígenas que atuam com sucesso no mercado formal de trabalho e comunicadores que nunca pisaram em uma redação ou sequer saíram de sua região. Pois é assim que tem funcionado esse processo de aprendizado – e muito bem.
Leio nos jornais que também nesta mesma semana, na sede do CNPq, em Brasília, aconteceu o 1o Encontro Internacional de Pesquisadores Indígenas entre Aldeias e Universidades. Além de pesquisadores indígenas de cinco países da América Latina, participaram representantes do governo federal, professores, estudantes, cientistas e personalidades como o cacique Raoni. A ideia é unir conhecimento tradicional e ciência acadêmica para encontrar respostas globais e locais para a emergência planetária dentro dos princípios da justiça climática.
Os indígenas já romperam barreiras na universidade, na ciência, nos tribunais, no Congresso, até no Executivo. Sempre com avanço para o desenvolvimento do conhecimento e da democracia em todos esses campos.
Está na hora de ocuparem as redações para o bem do jornalismo e de todos nós.