Por Marcus Tavares
O ponto a que chegamos: duzentos anos de atraso educacional e seu impacto nas políticas do presente é o nome do livro (Editora FGV) que o jornalista Antônio Gois, especializado em educação, lançou no dia 28 de julho, no Espaço Itaú de Cinema, na Blooks Livraria, no Rio. Colunista de O Globo, Antônio busca mostrar aos leitores como o Brasil chegou ao atual quadro insatisfatório da educação, resultado de um longo histórico de desigualdade, descaso e decisões equivocadas.
O livro é dividido em duas partes: história e reflexões. Nesta última, o jornalista analisa alguns temas da pauta do dia, como o financiamento, a cultura da repetência e a baixa aprendizagem. “Para analisar determinadas políticas públicas de hoje você precisa entender o nosso atraso histórico, sem isso essa análise fica capenga. Contribuiria pouco com o debate se simplesmente fizesse um relato histórico. Por isso, procurei avançar um pouco mais, trazendo o ofício do jornalista, que é olhar para atualidade, mas trazendo o passado”, conta em entrevista à revistapontocom.
Segundo Antônio, o livro, portanto, não traz soluções para os problemas da educação brasileira nem era esse o objetivo. “Nem acho que deve ser o meu papel de jornalista dizer o que deve ser feito ou quais são as soluções. Se o jornalista ajuda a qualificar o debate público num tema tão importante quanto o da educação, ele já está dando a sua contribuição. São os especialistas da área que devem discutir e debater e implementar as soluções”, destaca.
Acompanhe abaixo a entrevista:
revistapontocom – De onde surgiu a ideia do livro? Qual é o público-alvo?
Antônio Gois – Surgiu do incômodo de perceber que o desconhecimento sobre o passado educacional do Brasil não ficava restrito só ao senso comum, às conversas familiares. O desconhecimento estava influenciando políticas públicas. Vemos isso claramente nos dias de hoje. No governo Bolsonaro então nem se fala. A ideia de que, no passado, o Brasil tinha uma educação de qualidade e rigorosa e que os professores eram bem pagos e respeitados são mitos. Assim como a noção de que no passado as crianças aprendiam e hoje não, culpabilizando o aparelhamento do Estado. São mitos que escutamos por aí. Quando analisamos as estatísticas, as evidências, os estudos disponíveis que tratam sobre o assunto, percebemos que a educação brasileira sempre foi uma grande máquina de exclusão em massa, que abusou do expediente da repetência sem que isso melhorasse a qualidade. Meu ponto é que, para entender os motivos dos resultados insatisfatórios da educação brasileira de hoje, é preciso ter um olhar mais rigoroso sobre o nosso passado educacional. E neste sentido pretendo atingir um público que vai além dos educadores. A ambição deste livro é chegar a um público também interessado, minimamente, nos rumos do país e disposto a dialogar a partir de evidências.
revistapontocom – Como foi o processo de elaboração do livro?
Antônio Gois – Muito sobre a história da educação do Brasil já foi escrita. Há uma historiografia vasta. Não precisei – nem era a pretensão do livro – fazer uma pesquisa inovadora e original que competisse com as obras de referência. Ao contrário, me debrucei principalmente na historiografia e literatura acadêmica que é vasta e de qualidade. O que faço como jornalista especializado em educação é apresentar de forma mais sucinta essa historiografia, na primeira parte do livro, por meio de uma linguagem que não pretende ser acadêmica e, sim, mais acessível, embora ainda muito referenciada. A segunda parte que relaciona o passado com as políticas públicas presentes tem mais a ver com o que eu faço semanalmente na minha coluna no O Globo, onde analiso os tópicos do presente, tentando me basear em estudos, estatísticas, ciências. Esse é o perfil de jornalismo que faço.
revistapontocom – O livro então está dividido em duas partes: história e análises?
Antônio Gois – Sim. A primeira mais histórica, dividida por períodos, do Império até a redemocratização do país. Já na segunda parte, à luz do atraso histórico, trato de alguns temas do presente, por exemplo, o financiamento da educação. Não é possível discutir ou analisar o financiamento da educação sem considerar o atraso histórico educacional. Não adianta dizer que o Brasil gasta, hoje, o mesmo que países desenvolvidos, se ignorarmos que os países desenvolvimentos têm um histórico de investimento, ao longo de todo o século XX, muito superior ao do Brasil. São várias conexões que faço. Esse é apenas um exemplo. Para analisar determinadas políticas públicas de hoje você precisa entender o nosso atraso histórico, sem isso a análise fica capenga. Contribuiria pouco com o debate se simplesmente fizesse um relato histórico. Por isso, procurei avançar um pouco mais, trazendo o ofício do jornalista, que é olhar para atualidade, mas trazendo o passado.
revistapontocom – Afinal a que ponto chegamos na área da educação brasileira? Há mocinhos e vilões nesta história?
Antônio Gois – Acho que o mais simples seria querer apontar mocinhos e vilões. Somos o que somos por conta do processo histórico. O Brasil é um país extremamente desigual. Na primeira parte da obra, exponho isso e procuro mostrar a diferença entre nós e os países desenvolvidos. Havia um nível de desigualdade nos países desenvolvidos quando começaram a investir na educação, mas uma desigualdade muito menor em relação ao contexto brasileiro. Somos uma sociedade extremamente desigual, com passado escravocrata. Ninguém passa ileso a isso. Seria muito fácil dizer que o grande vilão dessa história é a elite brasileira, mas todos nós somos a sociedade, fazemos parte desta mesma sociedade. Portanto, fujo desta pergunta de mocinhos e vilões. Estou mais interessado em entender os processos que nos levaram até aqui. E o ponto a que chegamos é um ponto ainda de atraso. Temos que reconhecer que o Brasil segue atrasado, segue em dívida com sua infância e juventude. Precisa atender às agendas do século XXI, mas ainda tem dívidas com as do passado, do século XX e algumas do século XIX, como a erradicação do analfabetismo. Isso tudo é posto no livro com muito cuidado. É preciso mostrar o atraso e o quadro insatisfatório da educação brasileira com cuidado para não dar margem ao discurso que nada presta na nossa educação. Avançamos muito e tento mostrar isso a partir do capítulo da redemocratização. Tivemos avanços significativos e não foram só no que tange ao acesso. De fato, o acesso avançou bastante. Só para dar um exemplo: o percentual de jovens de 15 a 17 anos matriculados no Ensino Médio aumentou de 15%, em 1985, para 75%, em 2020. Isso é um salto considerável. Só que neste contexto, muitos dizem que nada adiantou este salto, já que o país forma analfabetos funcionais. Não é verdade. A educação também melhorou em termos de qualidade, mas, sim, não foi suficiente. Essa melhoria aconteceu nos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental. No Ensino Médio, os avanços de qualidade são pequenos. É isso que explica a posição brasileira nos rankings, por exemplo do Pisa, quando ficamos atrás de países ricos. Esse atraso não é resolvido em cinco, dez anos. É um processo de uma geração. É um processo que precisa ter consistência, coerência, políticas públicas que sobrevivam a troca de governos. Em resumo: temos avanços que merecem ser registrados, mas sem a ingenuidade de achar que são suficientes. Não são.
revistapontocom – É possível dizer que, ao longo da história, a sociedade priorizou a educação?
Antônio Gois – Se você analisa historicamente, a demanda pela educação sempre existiu na sociedade brasileira. Desde a década de 30, autores argumentavam que a população, mesmo a mais pobre, fazia um esforço para enviar seus filhos à escola. Só que ela chegava num sistema altamente excludente. As crianças eram reprovadas logo nos primeiros anos. As taxas de reprovação do primeiro ano do Primário, o que seria, hoje, o nosso Ensino Fundamental, era superiores a 50%. As famílias enviavam seus filhos e as crianças repetiam, repetiam, repetiam e, acabavam, abandonando. Ou seja: algum valor a sociedade dava ao sistema educacional. Mas, no Brasil, a concepção sempre foi a de apenas garantir a oferta. Se o estudante vai aprender ou não, a responsabilidade é dele. Até hoje, por exemplo, há uma percepção, que persiste em muitos setores e boa parte dos professores concorda, de que a reprovação é boa, que reprovar o aluno é bom, ele vai aprender mais, apesar de todas as evidências indicarem que não, que a reprovação não resolve os problemas. É claro que entramos, às vezes, num debate muitas vezes rasos: se a reprovação não resolve o problema, o caminho é aprovar todos os estudantes automaticamente. Esse debate foi e é muito mal colocado. Inclusive, nós da imprensa, tivemos um papel ruim neste debate, como se a aprovação automática fosse o problema da educação brasileira. Como se não tivéssemos o problema de baixa qualidade antes da aprovação automática. Por outro lado, os sistemas educacionais mais desenvolvidos entendiam que era preciso investir na educação, numa educação obrigatória e que desse conta de todos, todos na escola e concluindo com qualidade.
revistapontocom – O que você pretende com este livro?
Antônio Gois – Ajudar a qualificar o debate público. Não pretendo e não trago soluções. Nem acho que o meu papel de jornalista é dizer o que deve ser feito ou quais são as soluções. Se o jornalista ajuda a qualificar o debate público num tema tão importante quanto o da educação, ele já está dando a sua contribuição. São os especialistas da área que devem discutir e debater e implementar as soluções. O jornalismo deve qualificar o debate público, contribuindo para que boas políticas sejam implementadas.