Por Janos Biro
Bacharel em Filosofia, pós-graduando em Teologia e desenvolvedor independente de jogos
Ficções interativas são obras literárias onde o leitor pode interagir com a narrativa enquanto ela está acontecendo, o que faz com que o leitor também faça parte do processo de criação da ficção. Há basicamente duas formas de tornar interativa uma narrativa. A mais tradicional é a narração oral interativa, onde o ouvinte interfere na estória enquanto a ouve, e o narrador é suscetível a alterar a narrativa em resposta à interferência do ouvinte. A outra é a obra eletrônica, chamada de ‘jogo de texto’, que é um programa de computador onde o texto da narrativa será exibido, e ao mesmo tempo o leitor é convidado a digitar ‘comandos’ que interferem na narrativa, representando as ações da personagem principal. Por isso, a ficção interativa é geralmente narrada na segunda pessoa. O texto dirá algo como ‘Você está diante de uma bifurcação. Para que lado você quer ir?’, e o leitor poderá digitar ‘esquerda’ ou ‘direita’. O programa processa o comando e responde com o texto apropriado, de acordo com a programação prévia do autor.
Uma ficção interativa tem diferenças estruturais em relação à ficção tradicional. A mais importante das diferenças estruturais é que as partes da ficção interativa não estão arranjadas em ordem linear, mas sim num padrão de rede, e o que define a conexão das partes são as escolhas do leitor.
Uma ficção interativa não pode ser reduzida a um simples encadeamento de dados, como um disco ou um livro. A ficção interativa tem duas ‘formas’: uma é inerte e a outra é ativa. A forma inerte é o código que contém sua programação. Esta é a forma com que é escrita pelo autor. A forma ativa é a forma como ela é lida. Esta é totalmente diferente da forma inerte, pois grande parte de seu próprio conteúdo jamais aparece ao leitor. As regras que vão organizar o funcionamento da parte expressiva da obra permanecem ocultas na forma inerte, assim como o código de um software permanece oculto do usuário final.
O autor deve usar um raciocínio relacional ao escrever uma ficção interativa, pois cada elemento adicionado na forma ativa afeta o resultado final. O leitor que lê a forma inerte da obra não experimenta a obra, ele apenas conhece os elementos e as regras de funcionamento. A leitura da parte inerte não é interativa, ou seja, o que o autor escreve diretamente não é a obra em si, mas as condições de possibilidade de uma obra, que só pode existir enquanto estiver sendo narrada ao leitor. Na verdade ele escreve uma base geradora de obras, e esta só fica realmente pronta quando o leitor interage com a forma ativa e completa a narrativa.
A forma ativa da estória pode ter tantas possibilidades que se torna impossível conhecer todas elas, mesmo para o autor. O leitor aprecia uma faceta da história. Uma faceta que, por ser direcionada por suas escolhas, não permite que ele fique passivo. O leitor adquire parte da responsabilidade pelos rumos que a estória toma, e por isso se confunde o autor. A obra lida interativamente não pode ser reduzida a uma ordem linear de proposições, mas mesmo as proposições que estão sendo expressas pela forma ativa não podem ser interpretadas de maneira linear pelo leitor. Elas propõem desafios que exigem um raciocínio lateral por parte dele. O raciocínio do leitor, provocado pelo conflito da narrativa, é uma parte da ficção interativa.
O modo com que o leitor interage com a obra afeta a narrativa decisivamente, ao invés de apenas interpretativamente. Em uma ficção tradicional, o autor pode nos esconder informações que fazem parte da estória como ele a pensou, mas esta permanece uma realidade imutável. O autor pode até mesmo adicionar efeitos de neutralidade ao relato de um evento para que cada leitor faça seu próprio julgamento, mas este julgamento não afeta o curso da narrativa. Numa ficção interativa, a maneira com que se desvela um mistério é muito mais dependente da intersubjetividade entre leitor e autor do que da mera interpretação do que o autor escreveu.
Por exemplo, num conto interativo ambientado num quarto é possível que o autor tenha determinado que existe uma bola embaixo da cama. O texto inicial poderá não dar indicação alguma disso, descrevendo apenas um quarto com uma cama. O leitor só descobre a bola quando, ao imaginar que algo possa haver algo embaixo da cama, entra o comando ‘olhar embaixo da cama’ na linha de ‘input’ do programa. Se ele não pensou em entrar este comando, significa que a personagem não olhou embaixo da cama, e logo não viu a bola, assim a bola não existe nessa estória como ela é contada para esse leitor, embora sempre estivesse lá ‘em potência’. Quando alguém resolve olhar embaixo de uma cama numa ficação interativa, esta ação é motivada pela mesma curiosidade que levaria alguém a fazer esta mesma ação no mundo real. O significado daquela ação será diferente para cada leitor, na medida em que seus motivos para escolher esta ação em particular são subjetivos. Isso adiciona complexidade à obra interativa, criando uma sensação de envolvimento maior entre leitor e obra. Não apenas é uma narrativa ramificada, é o que chamaríamos de uma experiência de atividade, que é tão única quanto uma experiência real.
Numa ficção interativa o leitor precisa necessariamente estar envolvido na narrativa para que ela possa se desdobrar, pois ela não pode lida passivamente, sem que escolhas sejam feitas por parte do leitor. Quando há um desafio, o leitor precisa imaginar a situação descrita com o máximo de detalhes possível, e construir uma solução viável. A narrativa, nesse sentido, não é dada ao leitor, ele deve procurá-la por tentativa e erro. Algumas escolhas podem levar a conseqüências indesejáveis, levando ao fim prematuro da narrativa, ou exigindo correção. Certos desafios podem exigir que o leitor resolva ‘puzzles’ de lógica e memória.
Embora a liberdade de se aprofundar na estória seja a mesma de uma ficção tradicional, a ficção interativa pode ser direcionada pelo autor. Isto ocorre porque a interação permite um diálogo com a obra. A interação depende da recepção, e provoca uma resposta da própria ficção. O autor pode então verificar a compreensão do leitor antes de passar para outra parte da estória, por meio de desafios que exigem uma resposta correta do leitor.
Dessa forma, o autor não apenas espera que o leitor experimente diferentes leituras, mas que desempenhe também o papel de co-autor da narração. Ele presta mais atenção, tanto aos detalhes quanto ao sentido da obra, quando participa ativamente da narração. Isso também garante à ficção interativa qualidades pedagógicas, que já são aplicadas em maior ou menor grau em livros didáticos e jogos educativos.
Outra característica da ficção interativa é a identificação com a personagem principal. Sem identificação o leitor não se sente inclinado a fazer uma escolha relevante, e sem sua escolha o processo de leitura se interrompe. Alguns leitores preferem escolher as ações da personagem com base no que eles fariam se estivessem no seu lugar. Outros preferem não pensar como eles mesmos e interpretam a personagem seguindo sua descrição ou a imagem que eles criaram dela. A ficção interativa precisa da subjetividade do leitor para se fazer completa e adquirir sentido, e isso se torna mais evidente na criação da personagem. Independentemente de como o leitor prefere encarar suas escolhas numa ficção interativa, ele precisa se identificar com a questão que está tentando solucionar. Numa ficção tradicional o raciocínio do leitor não é decisivo para o personagem, por isso a leitura não exige necessariamente esforço cognitivo. Por essa característica a psicologia tem usado de formas de ficção interativa, ou dramatização, para envolver indivíduos em situações imaginadas e analisar suas escolhas.
As características próprias das ficções interativas, além de trazerem uma nova e interessante categoria literária para ser explorada, podem ser usadas como ferramentas educacionais. O conceito já é conhecido e aplicado, embora não extensivamente. A ficção interativa adiciona um grau mais intenso de intersubjetividade à literatura e à comunicação textual, relacionando-se com a teoria da realidade virtual e do hipertexto. Espera-se que ela seja usada como uma forma mais ampla de transmitir idéias de forma não ostensiva.
Texto apresentado no III Colóquio de ficção e filosofia da UNB, em 2007