O fim da ausência

Por Rafael Coimbra
Jornalista. Pesquisador do Labmídia

Qual foi a última vez que você ficou completamente desconectado por um dia? O máximo que consegui foram umas 12h agora nas minhas férias. A ideia era passar dois dias isolado em Ilha Grande, longe das redes sociais. Até comecei bem, fazendo uma caminhada numa trilha paradisíaca com praia e cachoeira. Só que, mais tarde, quando cheguei na pousada… o wi-fi foi irresistível!

Pra muita gente, ficar várias horas desconectado é enlouquecedor. E acho que só aguentei tanto tempo porque faço parte de uma geração que um dia já viveu sem a internet. Mas será que os nascidos na era digital conseguem ficar longe dela? E quais as consequências da hiperconexão?

Essas questões estão no livro “The End of Absence” (“O fim da ausência”, em tradução livre, ainda sem versão em português). A reflexão é extremamente atual e importante. Por exemplo, o que pode acontecer se não tivermos mais nenhum momento de ausência? A pergunta parece boba. Mas é preciso lembrar que estamos perto de chegar, pela primeira vez na história, num ponto em que provavelmente será impossível vivermos desconectados.

Ninguém vai mais saber o que é estar sozinho, não no sentido físico, mas mentalmente, apenas com os próprios pensamentos. Sempre haverá um dispositivo ligado à rede perto da gente. O autor do livro, Michael Harris, diz que vivemos atualmente num estado contínuo de atenção parcial. Isso tem uma série de implicações. Desde a falta de tempo para lembrar das memórias, ou das condições ideais para um processo criativo. Isso só é possível, segundo ele, num momento de ausência.

É fácil perceber essa angústia de estarmos o tempo inteiro ligados, e como nos adequamos sem perceber. Quem usa WhatsApp (alguém não usa?) fica de olho pra ver se a pessoa do outro lado já leu a mensagem e espera uma resposta imediata. É um ciclo veloz, com pouca reflexão, e que às vezes gera ruídos nas redes sociais.

Outros efeitos desse mundo acelerado já foram analisados aqui no Labmídia.

No livro, o autor questiona o futuro da automatização de nossas decisões. Se estamos o tempo inteiro conectados e assessorados por diversos aplicativos, é provável que passemos a delegar cada vez mais decisões pessoais para as máquinas. A inteligência artificial e a internet das coisas vão acelerar esse processo. Harris descreve os mecanismos sedutores da tecnologia e como nosso cérebro se torna “viciado” em estar conectado. Por isso, acha que é cada vez mais difícil optar pela ausência. O livro é um tanto alarmista. Parte do princípio que vamos perder algo importantíssimo – a ausência – e que as consequências devem ser irreversíveis.

Acho que ainda é cedo pra afirmar isso. Ao longo da história passamos por transformações tecnológicas profundas e nem por isso deixamos de seguir em frente. Ganhamos por um lado, perdemos por outro. Mas fica o alerta. Nós, a última geração do sentimento da ausência completa, somos guardiões dela, ainda que na memória. Pense nisso. Sozinho, desconectado, se ainda for possível.

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