Tradução: Fernanda Lizardo, edição de Leticia Nunes. Com informações de Hannah Kuchler [“How to preserve the web’s past for the future”, Financial Times, 11/4/14]. Publicado no Observatório da Imprensa
Depois de sofrer um ataque por homens armados e mascarados na Crimeia, em março passado, um grupo de jornalistas investigativos fez uma ligação improvável para uma equipe de arquivistas em São Francisco, na Califórnia, a quase dez mil quilômetros de distância dali. Após anos trabalhando para expor a corrupção na Ucrânia, o Centro de Jornalismo Investigativo da Crimeia estava preocupado com a possibilidade de suas reportagens desaparecerem da internet.
O contato em questão foi feito com o Internet Archive, uma biblioteca digital sem fins lucrativos fundada em 1996 e dedicada a preservar o passado da internet para uso dos futuros historiadores. Dez minutos após o telefonema, os funcionários do arquivo começaram a armazenar as páginas da web com as reportagens criadas pelo grupo da Crimeia. Brewster Kahle, de 53 anos, fundador do Internet Archive, recorda a conversa telefônica daquele dia. “Eles disseram: ‘Isso é importante demais para ser perdido’”.
Presente perpétuo
Os registros do Internet Archive não se concentram apenas em eventos históricos divulgados amplamente; eles incluem até mesmo postagens de blogs domésticos. Segundo Kahle, ao preservar a história desta forma, a internet se revela uma “bênção”, uma oportunidade de conceder uma profundidade inédita ao estudo da história de nossas vidas – cada vez mais presentes online. Em vez de confiar em reportagens oficiais, cartas particulares (que podem ser facilmente destruídas) e projetos pontuais da história narrada oralmente, os historiadores teriam potencial para estudar a vida de pessoas comuns, ou interesses de nicho, em tantos detalhes quanto naqueles apresentados nos relatos dos poderosos.
“A web está bloqueada num presente perpétuo. Ali está apenas o que as pessoas querem que você veja agora, no entanto isso não é bom o suficiente; não é assim que se administra uma sociedade ou uma cultura aberta”, diz ele. “O melhor da web já não está mais online”.
Direitos e privacidade
O potencial desse tipo de arquivamento de informação é muito grande. No entanto, as armadilhas também são significativas. A ferramenta não só pode mudar a forma como a história é contada, como também há questões mais amplas envolvidas: por exemplo, de quem é o direito de guardar o passado da web? E, nestes tempos de vazamento pós-Edward Snowden, o que a disponibilidade destes dados significa para a privacidade individual? Por fim, qual é a melhor maneira de fazer história a partir da internet?
O Internet Archive é uma dentre várias instituições – as quais incluem setores da Biblioteca Britânica e da Biblioteca de Pesquisa do Congresso dos EUA – que tentam garantir que o conteúdo que se encontra online agora seja guardado para o futuro. O processo se dá através da captura de mais de um bilhão de páginas por semana, embora o Internet Archive não tente arquivar todas as páginas de todos os sites.
Este instantâneo da web tem sido realizado a cada dois meses desde 1996, e a porta de entrada para os arquivos, o mecanismo de busca “Wayback Machine”, é um dos sites mais populares da rede.
Preciosa fonte de pesquisa
Niels Brügger, diretor do centro de estudos de internet na Universidade de Aarhus, na Dinamarca, recorda-se bem de sua frustração quando via seu objeto de estudo desaparecendo diante de seus olhos devido às atualizações constantes da rede. Agora ele usa ferramenta similar àquela apresentada pelo Internet Archive: o arquivo nacional dinamarquês – o qual faz um instantâneo de todos os sites registrados no domínio .dk quatro vezes ao ano. Deste modo, ele consegue controlar a forma como a internet se desenvolve em seu país como um todo.
“É realmente uma nova fonte surpreendente para os historiadores”, diz ele. “Isso nos dá uma grande oportunidade para estudar a vida diária das pessoas. É como se tivéssemos um gravador em uma feira na Idade Média”.
Ruth Page, professora de linguística na Universidade de Leicester, no Reino Unido, fez da Wikipedia objeto de seu trabalho. As ferramentas de congelamento da web já auxiliaram na avaliação de como as postagens na enciclopédia online são editadas durante o desenrolar de determinado evento.
Ruth acredita que, no futuro, os historiadores terão de transformar seu jeito de trabalhar. “Sou uma empírica, portanto gosto de dados. É como ser solta em uma imensa loja de doces”, brinca ela.
De acordo com Philip Howard, professor de políticas públicas da Universidade da Europa Central, em Budapeste, existe mais uma consequência quando historiadores têm acesso a uma quantidade maior de dados: as pesquisas importantes ficam mais acessíveis. Howard usou as mídias sociais para estudar a revolta árabe; ele não só constatou que o contato da sociedade civil com observadores externos via web teve grande papel no auxílio dos manifestantes contra os regimes autoritários, como também descobriu que a internet reduziu o custo de sua pesquisa.
Para esses acadêmicos, os benefícios são claros. No entanto, também existem preocupações, principalmente entre as empresas detentoras destes dados – e cujo modelo de negócio principal tende a ser vendê-los a anunciantes.
Brügger reconhece um conflito entre as empresas que enxergam os dados como uma “mercadoria” e os historiadores, que os veem como fonte de pesquisa. “As empresas que possuem grande parte dos dados não têm uma perspectiva de longo prazo. Já as instituições de patrimônio cultural precisam preservá-los para a posteridade, o que soa estranho às empresas”.
Privacidade
As questões que envolvem a privacidade também desempenham um papel importante na discussão. Algumas empresas têm políticas que as impedem de disponibilizar determinadas informações.O Internet Archive remove material pessoal caso seja solicitado. Normalmente, os pedidos são para conteúdo que as pessoas gostariam de esquecer, como, por exemplo, um blog sobre um casamento fracassado.
Do ponto de vista dos historiadores, pelo menos, há pouca atenção a esse tipo de questão, como por exemplo se o direito à privacidade deve terminar após a morte da pessoa documentada. A crença de Brügger é que é melhor arquivar tudo e deixar que os estudiosos pensem nas questões éticas para cada projeto de pesquisa. “Se não arquivarmos, em dois anos tudo estará perdido”, diz. Para alguns, a resposta a estes problemas reside em dar às pessoas – e a grupos de pessoas – a capacidade de preservar o próprio material online em uma espécie de cápsula do tempo individual.
Phil Libin, diretor-executivo do Evernote, serviço de nuvem que organiza informações entre vários dispositivos, pensa em manter arquivos pessoais dos usuários depois que eles morrerem. Ele diz que o padrão seria manter tudo num status privado, com alguma garantia de que a informação iria para o lugar desejado pelo usuário, mesmo décadas depois de ele parar de pagar pelo serviço. “Os dados ficariam disponíveis por mais ou menos uma centena de anos e você poderia controlar quem teria acesso a eles e quando, podendo até ser seus filhos e netos, dali a 50 anos”, explica.
O Instituto Cultural do Google também disponibilizou uma ferramenta para as pessoas criarem verdadeiras galerias de suas vidas em sites particulares. Amit Sood, diretor do instituto, diz que o Google não quer ser um “curador digital”, mas sim permitir que todos, desde museus e galerias de arte até indivíduos, façam esse trabalho de curadoria por conta própria.
No entanto, algumas empresas ainda convidam ao equilíbrio. A Long Now Foundation, uma organização fundada em 1996 para promover o pensamento de longo prazo, quer criar um espaço para incentivar as pessoas a parar e pensar sobre como as decisões que tomarem agora serão capazes de afetar os próximos dez mil anos. E isso inclui o conteúdo que cai na rede.