Na semana em que acontece em São Paulo o ComKids (leia mais), que reúne uma série de debates sobre a qualidade da produção de conteúdos voltados para as crianças, a revistapontocom pergunta: por que a tevê aberta brasileira pouco ou nada investe numa programação de qualidade para o público infantil? Programas de sucesso como Sítio do Pica-pau Amarelo e Castelo RáTimBum sumiram da grade. Até mesmo a temporada das apresentadoras loiras e sensuais, com todas os seus senãos, também já se foi. Na tela da TV aberta, o que se vê são desenhos animados e, como sempre, estrangeiros. Afinal, por que isto acontece? Descaso dos produtores? Falta de recursos e investimentos? Desinteresse dos anunciantes? Do público infantil?
Mauro Garcia, diretor da TV RáTimBum, o primeiro canal por assinatura brasileiro voltado para a criança, explica: “As TVs investem onde há retorno, publicidade. Nos últimos cinco anos, os anunciantes têm migrado para os canais de assinatura. Apesar de esse público ainda ser pequeno, ele vem crescendo muito. É nesta fatia que estão as classes que mais têm condições de comprar os produtos. Os anunciantes, portanto, preferem investir na TV fechada”.
Soma-se a isto, acrescenta Mauro, o fato de que nos dias de hoje a propaganda infantil é, por certos setores da sociedade, duramente criticada, alvo de manifestações e campanhas contra sua existência. “Isso gera um investimento menor e consequentemente menos recursos para os canais de TV investirem numa produção de qualidade e conteúdo”.
Luz no fim do túnel? Não, na visão de Mauro. “Só se melhorasse a distribuição de renda entre a audiência da tevê aberta, que ainda não é suficiente para atrair novamente os investidores. A TV aberta no país está em um momento bastante difícil. Além de tudo isso, a publicidade teve que se reinventar com o avanço da internet. Ela não investe mais como antigamente e isso não se limita apenas ao público infantil. Antigamente, tínhamos intervalos comerciais de mais de cinco minutos, tamanho o número de anunciantes. O que não acontece hoje”, afirma.
Se para Mauro o problema está na apenas na falta de anunciantes, Regina de Assis, ex-secretária de Educação do município do Rio de Janeiro e ex-presidente da Empresa Municipal de Multimeios da Prefeitura do Rio (MultiRio), vai mais além. Para a professora, o problema é que a infância e a adolescência no Brasil não são valorizadas.
“Definitivamente, criança e jovem não são prioridades dos programadores, produtores e de quem financia os programas. Para os jovens, ainda há algum conteúdo. Mas para as crianças pequenas de até sete anos não temos nada. Quando conversamos com os programadores, fica claro que eles levam muito mais em consideração o valor econômico. Afinal, é muito mais barato importar programas estrangeiros do que produzi-los aqui com nossos valores culturais. No Brasil, ainda estamos na Idade da Pedra em relação aos direitos, sobretudo das crianças na TV aberta. Os valores culturais estão sendo deixados de lado em favor do lucro e da audiência. Os canais comerciais preferem, por exemplo, reality shows porque dão ibope, por mais medíocres que sejam”, opina.
Regina acredita que seja necessária a votação e a aprovação de um marco regulatório que defenda o direito das crianças e suas famílias por uma programação de qualidade. Marco regulatório que, segundo ela, já está previsto na Constituição Federal, mas que ainda não foi normatizado. “Está previsto na lei. É um direito que ainda não está sendo respeitado no Brasil”, frisa.
Outro problema apontado pela professora é o consumo. Para Regina, não há dúvidas: as tevês propõem o consumo das crianças de maneira ‘desavergonhada’. “Os patrocinadores estão muito mais interessados em vender do que contribuir para a constituição de crianças com bons valores, crianças cidadãs e mais educadas. Eles querem vender brinquedo, comida, roupa, mas esquecem que esses cidadãos têm direito de serem educados sobre a égide dos valores da solidariedade, amizade e companheirismo. E isso, garanto, poderia ser feito de maneira lúdica. Os anunciantes poderiam continuar vendendo, mas levando em conta o direito que as crianças têm de aprender. Não adianta encher a cabeça da criança com informações de Matemática, Geografia e Ciências e não ter cuidado com os valores, como autonomia, criatividade, honestidade. Há caminhos. Aqui na cidade do Rio de Janeiro, criamos a Empresa Municipal de Multimeios da Prefeitura do Rio, a MultiRio. Durante minha gestão [2001-2008], desenvolvemos uma política pública de produção de qualidade. E fizemos isso de uma maneira criativa e posso dizer, sim, de qualidade. Tivemos o reconhecimento da Unesco, que nos condecorou como uma das melhores práticas da educação em mídia na América Latina. Ganhamos múltiplos prêmios brasileiros e internacionais, como Animamundi e o Prix Jeunesse Ibero Americano. Além do Prêmio Japão, um dos mais cobiçados para quem produz esse tipo de conteúdo, com a série Juro que Vi”, conta.
Cleide Ramos, atual presidente da MultiRio, reitera as observações de Regina. Ela afirma que a falta de investimento numa programação infantil de qualidade é consequencia da mentalidade dos programadores. “De uma maneira geral, as TV abertas nao estão tão preocupadas com a formação das crianças, sua importância e herança cultural. Há problemas de financiamento, não se pode negar. Mas o que falta mesmo é uma preocupação maior dos programadores, uma mentalidade sobre a importância deste setor”.
Na avaliação de Cleide, é preciso que os programadores repensem suas atuações. Segundo ela, desde o ano passado a MultiRio, vem investindo numa programação voltada para crianças até os 10 anos. Um dos produtos recém-lançados, Detetives da Ciência, foi indicado este ano ao Prix Jeunesse Ibero-Americano. “Gostamos de produzir conteúdos onde as crianças vivem e experimentam situações. Isto atrai o olhar e a atenção das crianças que assistem aos programas. Elas se sentem envolvidas”, explica.
Produções à parte, o que se vê hoje na grade da programação da TV aberta para as crianças não é nada novo. Não espanta, não assusta. Pelo menos para Beth Carmona, presidente da ONG Midiativa e responsável pelo evento ComKids, realizado esta semana em São Paulo. “Os investimentos em produtos infantis audiovisuais nunca foram grandes e se existiram momentos de maior investimento, talvez, foram atípicos ou cíclicos”, revela.
Beth observa que a estratégia de importar programação infantil do exterior é antiga. “A TV aberta sempre comprou e ainda adquire material no exterior para montar seu bloco infantil. Às vezes, dedicando mais horas. Às vezes, menos. Na verdade, falta dinheiro de patrocínio no mercado para que os empresários da tevê se sintam inclinados em investir na programação infantil. A quantidade de anunciantes existente neste setor não necessariamente consegue assegurar um investimento relevante para produzir um programa para a TV. E os anunciantes que se dirigem ao mercado infantil estão passando por um momento de grande mudança. Há uma discussão importante no setor sobre a responsabilidade que a mídia tem no consumo infantil de alimentos e vestuário. Este é um ponto importante e todos os atores – sociedade, canais de tevê e anunciantes – precisam conversar para que possamos produzir nacionalmente e com qualidade para as crianças”, finaliza.