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Privacidade 2.0

Reflexões da professora Fernanda Bruno, Departamento de Psicologia da UFRJ.

No dia 16 de maio, a professora Fernanda Bruno, do Departamento de Psicologia da UFRJ, vai participar do I Seminário do Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Fenomenologia e Clínica de Situações Contemporâneas e interdisciplinares.  Fernanda participará da mesa A relação eu-outro no contemporâneo, a partir das 17 horas, no campus da Praia Vermelha.

Ao divulgar o evento em seu blog Dispositivos de Visibilidade e Subjetividade Contemporânea, a professora divulgou algumas reflexões sobre o tema em uma entrevista concedida, por e-mail, a professora Raquel Recuero, do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pelotas. Questionada por Raquel sobre a exposição pública do que é privado, Fernanda Bruno fez os seguintes comentários. Confira:

A questão tem muitos caminhos de resposta, pois há inúmeros elementos envolvidos nesse fenômeno de publicização ou exposição da vida cotidiana, íntima, privada etc.Vou começar pela constatação mais evidente, já anunciada por diversos pesquisadores deste tema: as fronteiras entre o público e o privado estão em deslocamento. Mas o que não é tão evidente é que este deslocamento não é apenas no sentido de publicizar o que antes era resguardado no âmbito privado, mas no sentido de ressignificar esses domínios e, mais importante, pensá-los segundo uma outra topologia. Que topologia seria essa? Uma topologia que não delimita dois pólos (dentro/fora, aberto/fechado, exposto/secreto etc), mas que comporta múltiplas camadas, níveis, escalas. Ou seja: cada vez mais deixamos de pensar a separação público/privado de forma estanque para pensarmos em múltiplos níveis e modos de privacidade, assim como em múltiplos níveis e modos de publicização.

Neste sentido, as opções de controle da privacidade/publicidade que encontramos nas redes sociais é uma expressão desta topologia e desta experiência. Regulamos, modulamos a nossa privacidade cotidianamente e selecionamos o que e como desejamos expor (ou não expor) para públicos ou audiências diferentes. Claro que no limite isso sempre existiu (ou melhor, desde que nossa experiência vital, política, institucional e espacial passou a ser orientada segundo essa distinção público/privado), mas agora essa modulação é extremamente corriqueira e intensificada.

Essa é a primeira observação mais geral e importante para encaminhar a nossa conversa. Paralelamente e atrelada a essa mudança topológica (que é também uma transformação no modo como experimentamos nossa vida privada e pública), eu adiciono três elementos, para ser breve:

1º) Vivemos uma sobreposição de sentidos e valorações próprios à convivência de uma cultura da celebridade e do espetáculo (mais antiga, considerando nossa herança mais recente) com a cibercultura. A cultura da celebridade e do espetáculo nos legou um alto apreço pela visibilidade midiática, que, como sabemos, atestava reconhecimento social, afetivo, financeiro etc. Mas fazia parte dessa cultura e desse valor um certo princípio de escassez que de algum modo dizia “imaginariamente” que essa visibilidade midiática era para poucos, para um seleto grupo de eleitos. A cibercultura vem bagunçar esse regime de visibilidade e introduz outras formas, dispositivos, alcances para a visibilidade, agora supostamente “para todos”, mas não da mesma forma nem com o mesmo sentido e alcance. O interessante da cibercultura é que ela acolhe diferentes regimes de visibilidade, e nela há tanto a reprodução da visibilidade midiática tradicional e sua lógica da celebridade, quanto outras vias de visibilidade cujas ações coletivas, políticas, cognitivas, estéticas escapam dessa lógica e, muitas vezes, até se fundam no anonimato dos agentes ou atores em jogo. Mas no tipo de fenômeno que você apontou, vejo nele um “locus” onde a cultura da celebridade e a possibilidade de produção, emissão e distribuição de conteúdo pelo usuário comum se retroalimentam. Creio que muitos adolescentes usam as novas mídias segundo essa lógica, buscando uma visibilidade que ateste um pertencimento social e afetivo que mimetizam de algum modo a celebridade. E no âmbito das redes sociais e da cibercultura, parte dessa visibilidade e desse pertencimento se conquista pela exposição (maior ou menor, segundos os níveis e camadas de que falei) da privacidade e da intimidade. Ou seja, vemos aqui a exposição seletiva da intimidade como motor de sociabilidade. O que também vemos em talks shows e reality shows na mídia de massa (embora os níveis de seleção, reconhecimento e pertencimento variem). Concluindo esse ponto, um dos elementos presentes nos fenômenos de publicização que você apontou está relacionado a essa sobreposição da lógica da celebridade com a lógica da sociabilidade pautada pela publicização seletiva (modulada, editada) da intimidade.

2º) Um segundo elemento concerne à expectativa de exposição pública presente nas redes sociais (e outras plataformas digitais) ou em situações/ambientes que impliquem alguma forma de registro audiovisual (o que se tornou quase que onipresente com os nossos dispositivos móveis c/ câmera e áudio acoplados). Dentro dos padrões “convencionais” de um espaço que se entende público (praça, rua), as pessoas têm uma idéia relativamente clara e muito ancorada no contexto e na situação (no aqui e agora) do grau de exposição a que estão sujeitas – e modulam suas ações tendo em vista essa exposição. A expectativa de exposição é, neste caso, relativamente coerente com os limites daquele espaço. Nas redes sociais, essa expectativa de exposição é mais difícil de se estabelecer e muitas vezes não coincide com a exposição a que de fato se está sujeito. Os tais controles de privacidade nas redes sociais são de algum modo uma tentativa de “concretizar” essa expectativa (o problema é que eles nem sempre são muito evidentes nem simples de manejar, o que faz com que muitos não os usem, como mostram certas pesquisas). O mesmo acontece no caso das festas e situações sociais com inúmeros celulares presentes. Toco neste ponto por conta do caso da transmissão via twitcam de sexo entre adolescentes que mencionou. A expectativa de exposição da intimidade de alguns dos “atores” presentes parece não ter incluído este transbordamento para as mídias sociais, o que torna o caso muito cruel e grave do ponto de vista ético. Que adolescentes tenham prazer em serem filmados e testemunhados por amigos enquanto transam não significa que eles desejem ser vistos por milhares de pessoas, por seus pais, professores, uma cidade inteira etc. Aí o problema ético é o da exposição do outro.

3º) O último elemento toca neste prazer em ver e ser visto. Acho importante perceber que não há apenas um mimetismo da celebridade, mas há uma excitação e um erotismo nessa troca social apimentada por exposições moduladas da intimidade. Ver pitadas da intimidade do outro e ser visto em sua intimidade é hoje uma das “zonas erógenas”, para retomar um termo psicanalítico, da sociabilidade contemporânea. Não há nada de novo aí, mas agora isso se tornou mais visível e cotidiano e há ainda poucas pesquisas sobre o tema no âmbito das redes sociais. Mas, importante, é preciso não confundir esse desejo e essa excitação positivamente experimentada com um desejo de ser exposto a uma publicização que não se escolheu, o que é muito grave.

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