Por Lila Diniz
Um repórter disfarçado de gestor de compras em um hospital público, três câmeras escondidas e quatro representantes de empresas fornecedoras de serviços para o governo federal. Em jogo, contratos milionários. Com o conhecimento da direção do Hospital Pediátrico Clementino Fraga Filho, no Rio de Janeiro, a equipe do programa Fantástico, da TV Globo, infiltrou o repórter Eduardo Faustini na instituição para mostrar como funciona o esquema de fraude em licitações na área de saúde pública. O resultado das gravações foi ao ar no domingo (18/3) e teve grande repercussão.
De acordo com a lei, é preciso haver uma licitação entre empresas que ofereçam o mesmo produto para determinar qual estabelecimento irá firmar um contrato com um hospital público. No esquema mostrado pelo Fantástico, as empresas – que deveriam atuar como concorrentes – combinavam valores para
fraudar a disputa. A vencedora pagava uma porcentagem do total do contrato para as outras candidatas, que propunham valores mais altos de forma intencional.
Sem saber que estavam sendo filmados, os representantes das empresas revelaram todos os detalhes das fraudes: da combinação do preço pelos serviços ao pagamento da propina para gestores de hospitais, que podia chegar a 20% do valor do contrato. A Polícia Federal abriu quatro inquéritos para investigar as
denúncias e deve ouvir mais de quarenta pessoas nas duas próximas semanas. O Ministério Público anunciou que também irá investigar as empresas flagradas no esquema fraudulento. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (27/3) discutiu o uso de câmeras escondidas pelo jornalismo.
No Rio de Janeiro, o programa contou com a presença do jornalista Luiz Garcia, articulista do diário O Globo. Garcia foi editor de Opinião e organizador do Manual de Redação e Estilo do jornal, trabalhou na
revista Veja e na Editora Abril. Em São Paulo, participaram os jornalistas Caio Túlio Costa e Claudio Tognolli. Consultor de mídias digitais e professor de Ética Jornalística, Caio Tulio foi o primeiro ombudsman da imprensa brasileira, na Folha de S.Paulo.Foi um dos fundadores do UOL e presidiu
o portal iG. Claudio Tognolli é diretor-fundador da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)e professor da Universidade de São Paulo (USP).
Os fins e os meios
Em editorial, Alberto Dines ressaltou que o jornalismo busca a verdade permanente e, por isso, está impregnado de questionamentos éticos ou deontológicos: “Cada passo e cada procedimento jornalístico suscita dúvidas – e não poderia ser diferente porque, sendo a imprensa um poder, suas ações só podem
ser praticadas de forma atenta, rigorosamente conscientes”. O jornalista lembrou que, em fevereiro, o Tribunal Constitucional da Espanha desqualificou o uso de câmeras ocultas por jornalistas. “Quem está certo? Todos os que se preocupam com um jornalismo de qualidade”, avaliou.
A reportagem exibida antes do debate no estúdio entrevistou o filósofo Renato Janine Ribeiro. Para ele, do ponto de vista ético, invadir a privacidade de uma pessoa não tem justificativa. No entanto, se o dano compensar a infração, a ação pode ser considerada correta. “Você só pode fazer alguma coisa que é de certa forma invasiva sob uma razão muito boa, muito superior ao dano causado”, disse Janine. O filósofo considera a situação delicada porque, durante as gravações, não é possível ter certeza se o ganho com a divulgação das imagens irá compensar a perda de privacidade dos envolvidos. Janine sublinhou que é importante discutir esta questão, mesmo que não se chegue a resultados concretos.
Cristiane Finger, professora da pós-graduação do Departamento de Comunicação da PUC-RS, ponderou que as imagens captadas por câmeras ocultas são sedutoras para quem assiste e facilitadoras para quem grava. Para a professora, a câmera escondida é uma armadilha contra o entrevistado. “A gente comete dois crimes ali. Um, contra os direitos individuais das pessoas. Nós não estamos em um regime de exceção, as pessoas têm direitos individuais. O segundo crime é de falsa identidade. Ou seja, nós estamos nos fazendo passar por outra pessoa. Isso é crime previsto no Código Penal”, criticou Finger. A professora ressaltou que nos Estados Unidos, pátria da liberdade de expressão, dez estados já têm jurisprudência contrária à utilização da câmera oculta por parte dos jornalistas.
Primeira solução ou último recurso?
Na avaliação de Givanildo Menezes, diretor regional de Jornalismo da Record-RJ, se um repórter não tem um flagrante espontâneo de um crime, deve recorrer a outros documentos e não ficar dependente apenas da câmera escondida: “Situações armadas, situações em que o crime existe, mas que naquela situação
foi induzido a acontecer pelo uso da câmera escondida, não devem ser uma ferramenta do jornalismo”. Rodrigo Hornhardt, chefe de reportagem do SBT-Rio, ressaltou que as imagens produzidas por microcâmeras costumam aumentar a audiência, mas não se pode “cair na tentação” de usá-las
indiscriminadamente.
O deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ), que foi jornalista, criticou a invasão de privacidade dos envolvidos, mas avaliou que em algumas situações a gravação pode ser válida: “Você não pode colocar uma câmera em um quarto para ver quais são os hábitos de uma pessoa. Não pode haver invasão da privacidade, isso é que não pode ser violado. Agora, quando você está na investigação de um crime, eu acho que os meios legais são válidos. Não existe sigilo em favor do crime. Se você está diante da conduta criminosa, a sociedade tem que permitir o uso de todos os instrumentos para revelar aquele crime”.
Para o advogado José Roberto Sampaio, o direito à intimidade dos representantes de empresas flagrados pela reportagem do Fantástico foi violado porque as pessoas estavam em uma conversa privada. No entanto, outros deveres e direitos também tutelados pela Constituição devem ser preservados,como o da integridade do processo. Por isso, se uma imagem de microcâmera é a única prova de um caso de corrupção, não deveria ser descartada: “A prova poderia ser considerada ilícita porque violou o princípio da intimidade. De outro lado, a gente pode ter a prova como lícita caso se comprove, no caso concreto, circunstâncias que levem à conclusão de que não haveria uma outra prova a ser produzida”.
Problema antigo
No debate ao vivo, Luiz Garcia ressaltou que o uso de microcâmeras pela imprensa não é novidade e disse que um repórter que grava alguém propondo ou revelando um ato ilícito está exercendo “jornalismo da maior qualidade”. “Não há chantagem, não há violência, porque a violência foi cometida pelo alvo da
gravação, pelo infrator”, comentou Garcia. O jornalista discorda da tese de que a privacidade dos representantes de empresas mostrados na reportagem devesse ser preservada.
“Elas tiveram a sua privacidade invadida, sim. E foi muito bem feito”, avaliou o jornalista. Para Garcia, deve-se usar o recurso da câmera oculta para fins honestos e sem prejudicar reputação de pessoas sérias. Garcia comentou o farto material disponível no Brasil para reportagens sobre corrupção: “A TV Globo, por sorte ou decisão, selecionou um grupo de bandidos de quinta categoria. Fisicamente autênticos. Não sei se houve muita deliberação nisso, se os conselhos superiores da TV Globo passaram meses escolhendo corruptos de diferentes perfis ou se acertaram na primeira leva. Eu acho que certamente acertaram na primeira leva”.
Caio Tulio Costa vê com cuidado o uso de câmeras ocultas e acredita que os casos devem ser avaliados individualmente. Na opinião do jornalista, a reportagem produzida pelo Fantástico fortalece a imprensa e a
democracia. “Eu não acho que o jornalismo vai ser melhor se usar e abusar deste recurso. Ele pode ser muito eficaz em determinados momentos, mas pode ser muito invasivo e destruir reputações que necessariamente não mereciam esta destruição”, ponderou Caio Tulio.
A mentira como ferramenta
Hoje, a microcâmera se popularizou e deixou de ser exclusividade da imprensa e da polícia. “Todo mundo hoje pode fazer e usar isso sem o menor pudor e sem o menor constrangimento ético”, criticou Caio Tulio. O jornalista ressaltou que emissoras públicas como a BBC, do Reino Unido, e a TV Cultura, de São Paulo, não usam câmera escondida e alguns manuais de redação restringem o uso dessa tecnologia. É questionável, na opinião de Caio Tulio, o uso da mentira como recurso jornalístico.
“O jornalista, a rigor, está em busca das diferentes verdades, de contar aquilo que está acontecendo de acordo com a visão das diferentes fontes, de acordo com os diferentes pontos de vista. Quando ele usa um recurso como este, ele está usando a mentira, o fingimento”, disse Caio Túlio. Por isso, o disfarce vale apenas como último recurso. Para ele, a reportagem do Fantástico mostrou o “grau de delinquência” ao qual a sociedade brasileira chegou, o que é importante do ponto de vista jornalístico. “O problema é que isso pode virar um festival lamentável de invasões de privacidade e forçar pessoas a fazer coisas que normalmente elas não fariam”, afirmou o jornalista.
Claudio Tognolli defendeu o uso da câmera oculta: “Em casos de interesse público, os interesses particulares não se sobrepõem aos interesses coletivos. O repórter está coberto de razão a usar a câmera oculta até porque, constitucionalmente, o partícipe de uma conversa está protegido pela Constituição se ele resolver tornar essa conversa pública, se essa conversa tiver interesse público”. Tognolli acredita que o jornalista deve se valer de todos os instrumentos disponíveis para revelar informações relevantes para a
sociedade.
O limite do jornalista, para o representante da Abraji, é a lei. “A câmera oculta para o jornalismo e para a sociedade hoje é tão importante quanto o telescópio foi para Galileu, ou quanto o microscópio para o Leeuwenhoek. É um instrumento de buscar novos universos desde que o fundamento seja a informação
de interesse público”, disse Tognolli.
A preguiça nas redações
O uso indiscriminado de gravações fornecidas pela Polícia Federal e de dossiês montados por políticos contra seus opositores pela imprensa, situação frequente nas décadas de 1990 e 2000, foi criticada por Tognolli. “Para se afastar de publicar o que lhe foi dado – ou seja, o que seria um ponto de partida virar um ponto de chegada –, o jornalista eventualmente tem tentado andar com as próprias pernas. Então, põe a câmera oculta como um deus ex machina para salvar o jornalismo de fazer cover, ou seja, de pegar
a investigação pronta”.