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Sem transmissão, não se constroem laços

Entrevista com a professora Rosa Maria Bueno Fischer.

Por Marcus Tavares

Do ponto de vista da produção subjetiva, as redes sociais possibilitaram ganhos inegáveis para a sociedade, como a rápida comunicação com o outro, o acesso quase imediato à informação, as trocas até afetivas e novas formas de socialização. Mas por outro lado, nos tornaram muito dependentes das tecnologias e da aprovação do outro. A análise é da professora Rosa Maria Bueno Fischer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Em entrevista à revistapontocom, ela diz que “esse modo de continuamente avaliar o outro, de saber se nos leram, se nos deram uma “curtida”, têm, no mínimo, um custo emocional e de tempo por vezes exagerado”. Destaca que também é preciso prestar atenção no que ela chama de síndrome do I, me and myself : “Esse jeito de ser contemporâneo em que o eu individualista e egocêntrico parece que encontra espaço livre para se manifestar, como se isso tivesse a ver com liberdade de expressão e até com liberdade política”.

Pesquisadora do CNPq e autora dos livros O Mito na sala de Jantar, Televisão & Educação: fruir e pensar a TV, e Trabalhar com Foucault, arqueologia de uma paixão, Rosa Fischer acredita que, no contexto atual, a presença do adulto se faz necessária para o crescimento de crianças e jovens. “Sem transmissão, sem um adulto que tenha algo a dizer às novas gerações, não se constroem laços, afetivos, sociais – o que é fundamental para uma educação digna desse nome.

Acompanhe a entrevista concedida ao jornalista e professor Marcus Tavares:

REVISTAPONTOCOM – É possível traçar uma linha histórica do impacto da TV sobre a sociedade brasileira, do Mito da Sala de Jantar (seu livro escrito na década de 80 sobre a recepção da TV por estudantes da rede pública) aos dias de hoje?
Rosa Maria Bueno Fischer – Trata-se de uma questão muito ampla. O Mito na Sala de Jantar foi escrito em 1982 e publicado em 1984. Portanto, são mais de 30 anos. O livro nasceu de uma pesquisa com crianças e adolescentes de camadas populares do Rio de Janeiro, sobre sua relação com a TV. Fico pensando: onde estarão aquelas crianças? Que adultos nasceram dali e hoje têm seus 40 ou 50 anos? Nos anos 1980, meninos e meninas de escolas públicas do Rio de Janeiro, da Zona Norte, manifestavam o genuíno desejo de “ver-se na TV”. Não interpretei esse desejo como algo narcisista. Pelo contrário. Via naquelas palavras um gesto. Um gesto de alguém que me dizia: “eu não estou ali na tela”. Ao mesmo tempo, aquelas crianças sabiam tudo de todos os canais de televisão. E esperavam que a TV lhes ensinasse muita coisa, até sobre sua vida sexual, seu desenvolvimento físico e emocional. Hoje, o acesso a canais pagos e especialmente à internet certamente provocaria nas crianças um outro tipo de resposta, na qual estariam todas essas outras possibilidades, como inclusive a de postar um vídeo no YouTube, comunicar-se com gente de qualquer parte do mundo por meio de jogos eletrônicos, ver-se infinitas vezes em fotos de selfies, enviar mensagens instantâneas pelo WhatsApp, e assim por diante. De qualquer forma, acho que a TV aberta não perdeu sua importância e alcance. Grande parte da população acompanha o que acontece no mundo pela voz e pela imagem do que lhes narram programas como o Jornal Nacional ou outro telejornal. A ficção, amada unanimemente por pessoas de qualquer camada social, tem ainda seu lugar na TV, nas telenovelas, minisséries e filmes das redes abertas; e, claro, nos dispositivos de streaming (como Netflix, Oracle, Sky, NetNow, dentre tantos). Num dia em que falta luz costumo olhar pela janela as casas e apartamentos próximos a mim, o silêncio que se instala e, de repente, até palmas e um “oh” entusiasmado, quando o problema de eletricidade se resolve: imediatamente o tom azulado das salas, saído da tela das TVs agora digitais, volta a reinar. Outro aspecto a comentar é o crescimento absurdo de programas que remetem ao “ver-se na TV”, reclamado pelos alunos e alunas de escolas públicas do Rio de Janeiro, nos idos de 1980. Cada vez mais, além dos reality shows, nossa vida íntima é exposta nas telas da televisão, muitas vezes em canais abertos. Cada vez mais somos objeto de “educação” dos comunicadores: eles nos ensinam a arrumar nossa casa, nos dão aulas de como controlar nossos filhos, como ensiná-los a alimentar-se bem, como podemos curar doenças como a de acumular objetos e peças de vestuário. Se vários desses programas não me agradam, pela forma como os adultos são desautorizados na sua função de educadores e como nos vemos numa super-exposição de nós mesmos, por outro lado fico satisfeita de ver que ocupam um bom espaço programas como os que nos informam sobre a importância radical da alteridade, como é o caso da série Liberdade de gênero, do GNT. Neste último caso, a exposição da intimidade é perfeitamente compreensível e forte, do ponto de vista comunicacional e inclusive político. Em suma, as coisas mudaram muito. Mas ainda vejo a TV com uma presença bastante relevante em nossas vidas.

REVISTAPONTOCOM – A senhora falou sobre a internet e alguns de seus desdobramentos. Pode-se dizer que as redes sociais ocupam hoje o lugar de destaque que a TV tinha no final do século XXI? O que isto traz para a construção das identidades/subjetividades/narrativas de crianças e jovens?
Rosa Maria Bueno Fischer – As redes sociais ocupam grande espaço em nossas vidas, sem que a TV tenha simplesmente desaparecido ou perdido tanto assim de sua presença. Entendo que para os mais jovens as redes sociais se tornam cada vez mais importantes em seu cotidiano. Do ponto de vista da produção subjetiva, acho que há ganhos inegáveis, como a rápida comunicação com o outro, o acesso quase imediato à informação, as trocas até afetivas, as novas formas de socialização. Mas, claro, penso que há um uso do tempo que se concentra demais nos celulares como se ficássemos literalmente dobrados sobre nós mesmos – muito dependentes da aprovação do outro, que nos vê e é visto no Facebook, Instagram etc. Acompanho a série Black Mirror e vejo que não se trata de uma ficção científica tão distante de nós… As notas que nos pedem em aplicativos de táxi e outros, de 1 a 5 estrelas, vão se ampliando para muitas outras atividades de nossas vidas. E esse modo de continuamente avaliar o outro, de saber se nos leram, se nos deram uma “curtida”, tem, no mínimo, um custo emocional e de tempo por vezes exagerado.

REVISTAPONTOCOM – Pode ser retórico, mas estamos então diante de novas gerações?
Rosa Maria Bueno Fischer – Difícil falar, genericamente, de “novas gerações”. Observo a meninada e vejo que há uma escuta cada vez maior dos jovens, que não se calam, que praticamente cobram essa nova atitude de escuta, por parte dos adultos. Ocupar as escolas de Ensino Médio, como vimos recentemente, foi algo planejado e mantido por meio dos aplicativos de celulares, ao mesmo tempo que exigiu de meninos e meninas uma organização concreta, física, de cotidiano – com resultados impressionantes em termos de aprendizado de democracia. Claro, merece atenção o que eu chamo de síndrome do I, me and myself, esse jeito de ser contemporâneo em que o eu individualista e egocêntrico parece que encontra espaço livre para se manifestar, como se isso tivesse a ver com liberdade de expressão e até com liberdade política. Nesse mesmo sentido, observo que as polarizações se cristalizam, o julgamento terrível e sumário do outro que não pensa como nós – essas são atitudes que merecem nosso cuidado, na formação dos mais jovens.

REVISTAPONTOCOM – Será que a sociedade de uma forma geral está sabendo lidar com estas novas gerações?
Rosa Maria Bueno Fischer – O que mais me preocupa é o abandono, o desamparo, quase no sentido freudiano da palavra. O desamparo estaria em que os adultos, muitas vezes, abdicam de sua voz, de dizer o que pensam, sentem e desejam para si e para os mais jovens. Isso tem duas consequências danosas: superficialmente, pode-se achar que assim deixamos a meninada com a sensação de liberdade; na realidade, observa-se uma sensação de abandono, de falta de referência, de lugar de acolhida, não daquele que passa a mão na cabeça do mais novo e aprova todas as suas “maluquices”, mas daquele que se afirma, que assume o lugar de adulto generosamente, de forma dedicada e delicada, mostrando-se nas suas escolhas, no seu jeito de ser, sem transmudar-se ele mesmo em jovenzinho e “modernoso”.

REVISTAPONTOCOM – E a mídia? Como vem lidando com estas novas gerações?
Rosa Maria Bueno Fischer – Penso que faltam mais programas e séries que possam discutir mais abertamente situações de adolescentes e jovens. Acho que um apresentador como Serginho Groisman continua sendo uma boa referência. Mas sinto que seria bem importante a meninada ter acesso a séries cuja narrativa fosse mais aberta, mais delicada, mais profunda, de modo a oferecer numa linguagem aberta uma discussão inteligente, deixando espaços abertos para o espectador. Nesse sentido, lembro de uma série chamada My so called life, norte-americana, estrelada por Claire Danes (no Brasil, a série foi chamada Minha vida de cão, e exibida nos anos 1990 pelo canal Multishow). O que ainda persiste é um certo tom moralista e “educativo”, no mau sentido, aquele que se constrói sobre dualismos de bem e mal, sem a criatividade e a coragem de mostrar a riqueza e a complexidade da vida. Persiste também, na mídia, a escolha da juventude como o lugar da perfeição – como se assim nossa sociedade nos dissesse: “vamos ficar do lado de cá, sejamos sempre jovens, não nos tornemos adultos, pois isso é sinal de caretice”, e assim por diante. Falta uma clareza maior dos próprios criadores para TV e vídeo, sobre a necessidade de existir, de fato, uma distância criativa entre as gerações, entre o que é velho e o que é novo, entre o que passou (e ficou como genuína história a narrar às novas gerações) e o que chega, com potência para questionar, transgredir, ultrapassar.

REVISTAPONTOCOM – Neste contexto, o que deveria se educar nos dias de hoje?
Rosa Maria Bueno Fischer – Acho que já explicitei a importância de um adulto que assuma de fato o lugar do adulto, sem medo do outro-jovem, supostamente mais “sabido” que os mais velhos, por conta do acesso e da facilidade das novas tecnologias de informação e comunicação. Penso na relevância de o adulto estar bem informado, de reservar um tempo realmente de entrega e de escuta das crianças e adolescentes, não no sentido de simples e direta submissão a eles, mas de constituir-se como um adulto que deseja, que se responsabiliza pelo próprio dizer, diante dos mais jovens (que, pensando bem, esperam muito por essa responsabilização). Em outras palavras (e usando uma terminologia lacaniana): educar tem a ver com a presença de um adulto que se coloca no lugar de suposto saber (e não da certeza tácita e compacta); adultos a quem chegam perguntas dos mais jovens, com liberdade, e que, nesse processo, possibilitam ao outro o ensaio de respostas, mostrando que eles próprios (adulto pai, adulto mãe, adultos professores) genuinamente desejam essa busca de respostas pelos filhos e alunos. Sem transmissão (no sentido de Benjamin), sem um adulto que tenha algo a dizer às novas gerações, não se constroem laços, afetivos, sociais – o que é fundamental para uma educação digna desse nome.

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Cláudia de Almeida Mogadouro
7 anos atrás

Excelente entrevista com Rosa Maria Bueno Fischer, realizada por Marcus Tavares, ambos pesquisadores da maior seriedade. Mas fiquei com gosto de “quero mais”! Vou compartilhar com minha equipe de estudo que tem discutido infância e audiovisual. Muito obrigada, se derem continuidade a esta entrevista será muito bem recebida.

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