Por Flavia Perez.
Livro recém-lançado remonta aos principais acontecimentos históricos da última década pelo olhar de um crítico midiático
A segunda década do século XXI foi bastante movimentada no Brasil e no mundo. É neste cenário que, de acordo com o professor Francisco Fernandes Ladeira, mestre em Geografia pela UFSJ, foi escrito o livro 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático ([email protected]), recém-lançado pela editora CRV.
A obra é um amplo panorama das crises do processo de Globalização, radicalizações ideológicas em todo o planeta, ameaças de conflitos nucleares entre Estados Unidos e Coreia do Norte, além do ressurgimento da Rússia como importante ator geopolítico. No cenário nacional, o título contempla uma crítica da atuação midiática acerca de temas polêmicos, como a Copa do Mundo e a Olimpíada no Brasil, incluindo o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
O livro destaca ainda a consolidação da internet como principal meio de comunicação utilizado pela população global e a relação desse avanço tecnológico com o cenário político no Brasil e no mundo. Este decênio histórico, compreendido entre os anos 2011 e 2020, é retratado no livro por meio da seleção de cinquenta e um artigos escritos pelo professor e mestre em Geografia e publicados pelo Observatório da Imprensa, onde atua como articulista.
Para saber mais sobre a obra e entender a relação que Francisco Ladeira estabelece entre o ensino da Geografia e a mídia, leia entrevista com o autor:
Como professor, como você percebe a relação entre o ensino da Geografia e a mídia?
Percebo como uma relação bem próxima, mas que, ao mesmo tempo, é negligenciada ou mal compreendida por muitos docentes. Trabalhei com essa temática em minha pesquisa de mestrado. Conteúdos inerentes à Geografia Escolar, como geopolítica, meio ambiente, problemas urbanos e fenômenos climáticos, também estão constantemente presentes nas produções midiáticas, com diferentes formas e com diversas acepções.
No entanto, é preciso entender que as linguagens da ciência geográfica e dos meios de comunicação de massa têm suas peculiaridades e se destinam a públicos distintos. Como todo campo científico, a Geografia aborda as questões que se propõe a conhecer a partir de análises mais aprofundadas e reflexivas; enquanto a mídia tende a apresentar visões superficiais sobre os fatos. É algo próprio do formato das narrativas midiáticas. Por exemplo, não há como um telejornal enfatizar toda a complexidade de um acontecimento geopolítico em reportagens que possuem, em média, dois minutos de duração.
Diante dessa realidade, parcela considerável dos educadores opta, simplesmente, por não trabalhar com artefatos midiáticos em sala de aula e não debate com seus alunos as questões presentes nos noticiários, limitando-se assim a tecer críticas evasivas sobre os discursos midiáticos (a partir de chavões como “mídia aliena”, “mídia massa de manobra” e “mídia manipula”, porém sem explicar como ocorrem essas manipulações).
Por outro lado, o professor que incorpora à sua prática pedagógica textos de jornais e revistas ou programas de televisão sem promover suas ressignificações, ou transfere para estes recursos paradidáticos a tarefa de ensinar, transforma suas aulas em mais uma correia de transmissão para os discursos midiáticos, que, conforme bem sabemos, geralmente são tendenciosos e atendem a determinados interesses econômicos e ideológicos.
Portanto, o ideal não é simplesmente negar a mídia (como se isso fosse impedir o contato dos alunos com os diferentes meios de comunicação), tampouco incorporar materiais midiáticos à prática pedagógica como se estivessem prontos e acabados. Agindo dessa maneira, o docente pode levar o aluno a acreditar que o conteúdo vinculado pelos meios de comunicação, por si só, possui legitimidade como portador do conhecimento.
Quais fatores o motivaram a desenvolver um olhar crítico sobre os meios de comunicação?
Levando em conta que a mídia pode representar um poderoso concorrente discursivo para a ciência geográfica, é fundamental que eu, como professor, desenvolva um olhar crítico sobre os meios de comunicação de massa. Já como cidadão, considero que é preciso ficar bastante atento às armadilhas ideológicas presentes nos noticiários. Caso contrário, corremos o risco de perceber a realidade não como realmente é, em toda a sua complexidade, mas a partir das representações midiáticas que buscam explicações simplórias para os principais temas da atualidade.
Apesar de não haver um determinismo manipulador das massas através da mídia, os grandes grupos de comunicação do país possuem poderosos instrumentos de sensibilização e persuasão que podem nos induzir a aderir a uma determinada linha de pensamento. Lembrando as palavras do ativista negro estadunidense Malcolm X, “se você não cuidar, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo”.
O livro “10 anos de Observatório da Imprensa – A segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático” marca dez anos de artigos produzidos para o Observatório da Imprensa. Como começou essa parceria e quais os principais desafios que encontrou ao longo da última década para desenvolver uma visão crítica acerca da atuação midiática?
A parceria começou em 2011, quando encaminhei para o Observatório da Imprensa um artigo sobre as diferentes posturas de jogadores de futebol em relação à mídia. Na época, eu não imaginava que escreveria tantos textos para o site, mas as coisas foram fluindo. Cinquenta e um desses artigos estão reunidos no livro.
O principal desafio para desenvolver uma visão crítica acerca da atuação midiática foi, certamente, o fato de eu não ser formado em Jornalismo ou alguma área afim. Busquei contornar essa questão a partir de leituras de teóricos da comunicação como McLuhan, Charaudeau, Thompson e Castells. Entre os anos de 2016 e 2018 – devido aos acirramentos ideológicos envolvendo os períodos pré e pós-impeachment de Dilma Rousseff – os editores do Observatório da Imprensa da época optaram por seguir uma linha analítica de evitar textos considerados “mais polêmicos”. Considerei essa atitude controversa, afinal de contas não há como manter uma postura “menos polêmica” num momento em que a democracia brasileira estava sendo fortemente atacada.
Nesse mesmo período, o site passou por uma situação financeira difícil, ocasionando a diminuição do número de atualizações da página. Felizmente, essas questões foram superadas. No tocante aos desafios de escrita, cada época oferece temáticas diferentes. Nos cinco primeiros anos da década, escrevi bastante sobre a atuação partidária da grande mídia, principalmente os ataques ao PT. Ultimamente, a polarização tem sido presença constante em minhas produções.
Neste ano, evidentemente, a pauta é a pandemia do coronavírus. Vivemos tempos efervescentes. A cada dia temos notícias que mudam complemente os cenários sanitário, político e econômico.
A midiaeducação, que consiste na educação para os meios de comunicação, pode fortalecer a integração do estudante ao meio no qual está inserido propiciando o processo de aprendizagem? De que forma isso acontece na prática?
Preliminarmente, é preciso fazer uma constatação: nós, professores de Geografia, de maneira geral, não somos formados para compreender as relações entre discursos midiáticos e ensino. Isso significa que, durante a graduação, o futuro docente não tem contato com metodologias pedagógicas que apresentem sugestões sobre como trabalhar conteúdos geográficos apoiados em materiais midiáticos. O resultado: docentes despreparados para trabalhar didaticamente com os meios de comunicação.
Um grande grupo de comunicação não faz um documentário sobre um determinado conflito no Oriente Médio, por exemplo, pensando que este será utilizado em aulas de Geografia, mas com o intuito de alcançar um público mais amplo. Somente a partir da devida mediação do professor as produções midiáticas podem se constituir em suportes didáticos para o processo de ensino-aprendizagem em Geografia. Considero que a midiaeducação, atrelada aos conhecimentos pedagógicos, é um auspicioso instrumento para suprir essa lacuna representada pela ausência de reflexões entre os professores sobre o funcionamento do maquinário midiático.
Desse modo, a escola poderá promover a chamada “alfabetização midiática”, ou seja, ensinar a ler a mensagem midiática e compreender sua linguagem. Com um espaço de contraponto crítico ao discurso midiático, estudantes e professores poderão compreender satisfatoriamente a mídia, o processo de seleção de pautas e o contexto de construção da notícia. Em outros termos, dominar os mecanismos que regem a linguagem dos meios de comunicação de massa significa não incorrer no risco de ser por eles dominados. No entanto, infelizmente, ao longo de minha carreira profissional, tenho percebido que os diálogos entre midiaeducação e disciplinas propedêuticas ainda são bastante incipientes.
Diante da disseminação das fake news, a midiaeducação ganha uma relevância ainda maior para o ambiente educacional. Neste cenário, como a visão crítica sobre a mídia e suas relações de poder pode contribuir para evitar a desinformação e a propagação de notícias falsas?
Como sabemos, a mídia não é neutra. Os principais grupos de comunicação atendem a poderosos interesses econômicos e ideológicos. No sistema capitalista, notícias são mercadorias como quaisquer outros bens de consumo. Ter essas questões em mente é fundamental para passarmos de uma “consciência ingênua” para uma “consciência crítica” que permite reconhecer, além das intenções explícitas, as possíveis intenções implícitas que são vinculadas nos diferentes tipos de veículos midiáticos, inclusive nessa (aparentemente) “terra de ninguém” que é a internet.
Nesse sentido, professores e alunos são convocados à reflexão sobre os riscos e possibilidades do espaço virtual sob o ponto de vista pedagógico. Quando eu me formei em Geografia, há quase quinze anos, não imaginava que, em plena segunda década do século 21, professores de Geografia teriam que perder tempo explicando questões óbvias como o formato da Terra ser geoide e que os movimentos de rotação e translação existem. Além do terraplanismo, amplamente difundido nas redes sociais, temos vários youtubers com opiniões rasas e inverídicas sobre a geopolítica global.
Considero ser fundamental que o professor leve essas discussões para a sala de aula e esteja atento aos conteúdos que viralizam na internet, pois o ensino de Geografia tem muito a contribuir na formação do pensamento crítico, na desconstrução de fake news e na contextualização das informações disponíveis no espaço virtual, dando a elas sentido histórico e espacial.
Nos últimos dias, vejo que muitos indivíduos têm defendido propostas para criminalizar quem divulgar fake news. Trata-se de uma questão complexa que pode representar um primeiro passo para introduzir a prática da censura na internet.
Educar as pessoas para a mídia, isto é, ensinar o domínio da linguagem midiática, a meu ver, é o caminho mais indicado para lidar com a desinformação em larga escala. Receptores críticos que checam informações, comparam diferentes tipos de fontes e não têm receio de rever posicionamentos, dificilmente serão alvos vulneráveis às fake news.
Em um cenário pós-moderno, no qual crianças e jovens estão cada vez mais conectados a novas tecnologias, de que maneira o ensino da mídia como ferramenta pedagógica pode contribuir para o desenvolvimento das habilidades cognitivas e socioemocionais, alinhadas com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)?
Historicamente, a escola apresenta consideráveis dificuldades em dialogar com o meio circundante. Parece ser uma instituição descolada da realidade. Não por acaso, muitos alunos consideram que estudar é algo chato e enfadonho. Um conhecido truísmo pedagógico aponta que as escolas “estão” no século XIX, os professores no século XX e os alunos no século XXI.
Apesar do constante contato de crianças e jovens com o espaço virtual, ainda persiste um vazio significativo entre o potencial das novas tecnologias e a prática escolar. Como apontou o professor Pedro Demo em um de seus artigos, a maioria dos estudantes brasileiros tem contato com computadores, celulares e tablets, porém não consegue usá-los de modo inteligente, crítico e criativo; enquanto, por outro lado, muitos professores continuam desconectados e, não raro, mostram-se resistentes em incorporar as novas tecnologias em sua prática didática.
Nesse sentido, a proibição de dispositivos como smartphones e tablets no ambiente escolar favorece que os alunos concebam as novas tecnologias da informação e comunicação apenas como fonte de entretenimento, e não percebam os aparatos digitais como potenciais ferramentas para o processo de construção do conhecimento.
A partir do conceito de neuroplasticidade, pesquisadores como a estadunidense Maryanne Wolf apontam que hábitos dos estudantes contemporâneos são responsáveis pelo desenvolvimento de novas caraterísticas cognitivas. A prática de ler cada vez mais em tela, em vez de papel, faz com que nossos estudantes desenvolvam leituras dispersas e superficiais (devido ao grande número de fatores distracionais oferecidos pelos dispositivos digitais), o que, consequentemente, pode estar dilapidando determinadas capacidades de entender argumentos complexos e realizar análises críticas sobre os conteúdos lidos.
Por outro lado, conforme mencionei anteriormente, as novas tecnologias oferecem consideráveis possiblidades como ferramentas pedagógicas. Com a devida intermediação docente, programas como Google Earth possibilitam que os alunos “viajem” para qualquer lugar do planeta. Também as criações de grupos no Facebook ou no WhatsApp permitem que os conteúdos estudados extrapolem os limites da sala de aula.
Ao contrário de outras épocas, em que os professores orientavam seus alunos sobre “onde encontrar” informações; atualmente os docentes devem orientar os estudantes em relação a “como gerenciar” o grande número de informações presentes nos meios de comunicação, principalmente na internet. Lembrando que, até a informação ser de fato transformada em conhecimento, há um longo caminho hermenêutico a percorrer.
Entretanto, é importante frisar que a incorporação de tecnologias na educação deve levar em consideração, sobretudo, o fator humano. É imprescindível que docentes e discentes reflitam sobre os impactos das novas tecnologias não só na educação, mas na sociedade de maneira geral. O uso de diferentes tipos de aparelhos eletrônicos é inócuo caso o docente não possua a formação, preparação e conhecimento adequado para trabalhá-los em sala de aula. Não adianta introduzir novas tecnologias nas instituições escolares se as práticas pedagógicas continuarem obsoletas.
Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e coordena a área de Geografia da Vicenza Edições Acadêmicas. Autor do livro “10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático, lançado pela editora CRV”.