O holocausto enrustido ou Em busca do genocida interior

Mariana Amado Costa.

A culpa é paralisante, nos deixa amarrados, pelo pé, ao pé da cama. A responsabilidade, por outro lado, é fundamental para que se possa seguir adiante, evoluir como sociedade. No ponto de inflexão da história em que estamos, tanto pela pandemia quanto pelo extremismo político que tem levado o Brasil e alguns outros países ao limite de suas instituições, as questões e discussões colocam ambas, culpa e responsabilidade, vibrando no ar.

Sem titubear, escolhemos no dicionário as palavras mais pesadas para descrever o horror dessa política para a qual a economia importa mais do que a vida, e algumas vidas importam mais do que outras. Fascista, monstro, genocida… o que pode ser pior do que genocida? Gosto de ‘facínora’, por causa do filme do John Ford (com James Stewart, Lee Marvin e John Wayne!) The man who shot Liberty Valance, traduzido por aqui como O homem que matou o facínora. ‘Sifilítico’ também é legal, na infância tinha certeza de que era uma corruptela para ‘filho da puta’, meio como os italianos dizem ‘orco zio’, para não dizer ‘porco Dio’, que seria blasfêmia (ou seja, Deus, para eles, não se ofende com o pensamento, apenas com a enunciação).

Mais do que a qualificação ou culpabilização, no entanto, acho importante o exercício de identificação com quem sustenta essa política mórbida. Entenda-se, em momento algum acho que os crimes não devam ter julgamento e punição, devem sim, e severos, ainda mais o assassinato, a tortura e os crimes de ódio, que são hediondos e, a meu ver, não devem ser — não deveriam ter sido! — anistiados.

Porém, para que a revolta não seja apenas catártica, para que possa ser verdadeiramente transformadora, é importante reconhecer nosso papel na manutenção ou superação desse sistema baseado numa política econômica que tem a desigualdade como principal engrenagem de seu mecanismo.

Isso requer análises aprofundadas, individuais e coletivas, que compreendam o mal que há em nós, na nossa cultura, nos nossos valores. Não porque sejamos maus (ou ‘do mal’, expressão execrável, talhada para a exclusão), mas porque os preconceitos, a dominação, a exploração se sustentam por existirem dentro de nós, mesmo quando os refutamos racionalmente.

Um sentimento de culpa atávico tem me acompanhado ao longo da vida, mesmo tendo melhorado muito com o passar dos anos. Quando menina, acreditava ser culpada pela infelicidade daqueles que amava. Hoje, a coisa mudou para um nível bem mais leve. Ainda assim, uma pergunta do tipo “sabe o que aconteceu com aquele documento que deixei aqui?” acende a sensação de que posso ter perdido, jogado fora ou feito qualquer outra bobagem, mesmo que nenhum fato ou memória indique isso, pois devo ser eu a culpada.

A responsabilidade não fica para trás, e foi, tantas vezes, deturpada e extrapolada. Tinha necessidade de sempre saber as regras dos grupos sociais, dos lugares, das situações, para não fazer nada de errado. Não sei se era medo das consequências, da culpa (que, em si, era uma punição), ou de ter que enfrentar um auto-julgamento nada complacente. Mas lembro do pânico de fazer mal a alguém, e o muito que fiz, ainda que por pensamento.

Certa vez, estava no fundo de um ônibus cheio, voltando da faculdade, no Rio, quando senti um cheiro horrível. As pessoas em volta começaram a andar para a parte da frente, empurrando-se e comprimindo-se, e na parte de trás abriu-se um espaço, que logo foi ocupado por um maltrapilho, o responsável por aquela debandada, que ficou bem perto de mim.

Era a mistura da sujeira acumulada havia tempos com a sujeira recente, fedor muito intenso, como nunca senti, nem antes nem depois, vindo de alguém. O impulso de fazer como os outros era forte, mas resolvi continuar do seu lado. Pareceu-me um gesto necessário de solidariedade por tanta exclusão. Mesmo que não fosse percebido pelo homem, eu saberia que fiquei ao lado dele. Acho que ali encontrei um significado mais são do que é responsabilidade.

O filme O grande ditador, que tem Adolph Hitler como personagem-título, está completando oitenta anos e mantém-se inspirador. Tornando sósias o genocida amnésico e o barbeiro judeu, Carlitos reúne no mesmo corpo o espírito mais desumano e aquele mais amoroso e apaixonado.

Seu autor, Charles Chaplin, é um dos artistas que mais admiro, desde pequena. Além do conjunto completo de aptidões, que cobrem todos os métiers do cinema, da obra imensamente importante, do enredo, da estética, da música, da atuação, do humor maravilhosos, há algo muito profundo na opção por sua visão (e apresentação) de mundo. Nela, o que mais importa, senhor a que servem todos os recursos que compõem seus filmes, são os sentimentos. E sentimentos sempre superlativos, complexos, compassivos, apaixonados, desesperados, vitais.

Nem o Carlitos, com sua criatividade ilimitada, imaginou que o ditador pudesse achar que a Terra é plana.

Esta visão de mundo — os sentimentos como a verdadeira essência do homem —, mesmo parecendo impossível, anacrônica, não menos permanece como norte a seguir, mais do que uma utopia, como a única alternativa, a única beleza que se possa desejar para a humanidade. É o humanismo em estado puro — aí está —, e tão puro que comove, dói, na sua aparente impossibilidade.

Desmonta-se a figura do Führer, ao mesmo tempo tão poderoso e tão patético, cuja megalomania, que pretende tomar para si a autoridade sobre os valores do mundo, esconde no fundo um enorme complexo de inferioridade.

Encontrar o genocida interior — o mal e a raiva que habitam em nós —, de forma a superá-lo, por incapacitante, estéril, segregacionista e castrador, e transformá-lo em amor e compaixão — a arte mostra que é possível! — é como podemos passar da culpa à responsabilidade e conduzir a civilização por um rumo sonhado, pensado e construído coletivamente. Pedir que o outro, em quem se projeta nossa raiva, se ajoelhe conosco por alguns minutos em respeito à vida me parece, como gesto inaugural de um longo caminho, um símbolo auspicioso.

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