Por Jaime Pinsky
Historiador, escritor e diretor editorial da Editora ContextoO tempo histórico não tem um compromisso muito grande com o tempo cronológico, ou mesmo o tempo psicológico: décadas no Egito dos faraós pode corresponder a anos no período da expansão ibérica ou meses do século XXI. A percepção da velocidade do tempo histórico decorre do ritmo dos acontecimentos, assim como da rapidez dos meios de transportes e comunicações. Talvez por isso, sempre que estamos em algum local tranquilo, geralmente no interior, somos tentados a dizer que ali as coisas não acontecem e que é como se estivéssemos em pleno século XIX. É possível que, para evitar a ideia de que possamos ser vistos como retrógrados, ou fora do nosso tempo, busquemos acelerar tudo: músicas não podem ser lentas, filmes buscam ritmos alucinantes e, se não tiverem dois mortos por minuto de projeção, em média, são considerados acadêmicos. Propaga-se a ideia idiota que tudo que não é muito veloz, é chato. O pensamento analítico é substituído por “achados”, alunos trocaram a investigação bibliográfica por informações superficiais dos sites “de pesquisa” pasteurizados, textos bem cuidados cedem espaço aos recados sem maiúsculas e acentos dos bilhetes nos correios eletrônicos. O importante não é degustar, mas devorar, não é usufruir, mas possuir apressadamente. O tempo, o tempo correndo atrás.
Não que eu queira fazer a apologia da lentidão e da ineficiência, mas um bom concerto é feito tanto de bons allegros quanto de dolentes adagios. Além disso (e Charles Chaplin já percebia isso no início do século XX, em Tempos Modernos), ser humano é dominar a máquina e não ser por ela dominado. E aí, ao meu ver, se estabelece uma das principais distinções entre ler e ver televisão. Você pega o livro, olha a capa, a contracapa, folheia sensualmente suas páginas e escolhe, livremente, aquela que quer ler. Pode pular pedaços, começar pelo fim, reler várias vezes trechos que amou, para decorar, ou que odiou, para criticar. Desde que seja seu, você pode escrever no livro (para isso ele tem espaço em branco): livro rabiscado é sinal de leitura atenta. Nada como retomar um livro lido anos atrás e ler nossas próprias notas: se forem ingênuas, rimos com a condescendência de quem cresceu, se forem brilhantes nos preocupamos com nossa estagnação. Você estabelece seu próprio ritmo de apreensão do escrito, seja ele ciência e ficção. Tantas vezes me furtei lendo lentamente o final de um livro pelo qual me apaixonara e do qual não queria me separar…
Já a telinha é autoritária. Ela começa o assunto quando bem entende, faz as pausas que quer, inserindo as propagandas que deseja, determina o ritmo, diz quando e para onde devo olhar. Se não estou no poder, então, é pior ainda. Tenho que ver jogo de time que não gosto, pedaço de novela, entrevistas sem sentido, assassinatos sem conta, tudo num volume superior ao que eu suporto, mas que não tenho como regular, pois estou sem o controle remoto nas mãos. Mesmo quando vejo um vídeo ou um DVD, em que posso controlar algumas dessas variáveis, lido com o personagem e a paisagem imaginados por outro, emboto a minha imaginação e me curvo diante de heróis e mocinhas prontos e iguais para todos, enquanto, no livro, cada um sonha como quiser e puder. Não é por outra razão que dificilmente gostamos dum filme baseado em livro que já lemos, mesmo quando a película é de boa qualidade como O nome da rosa ou Vidas secas.
Antes que alguém pense que sou contra o cinema, ou até a televisão, devo dizer que isto não acontece, mas é que ando mesmo um pouco preocupado. Já não há mais quase nenhum consultório, laboratório e até sala de espera em pronto socorros de hospitais que não tenham a sua televisão. E, o que é pior, ligada. O infeliz chega quebrado, estropiado, ou apenas dolorido e se lhe impinge humor chulo, falsas “pegadinhas”, loiras igualmente falsas, com síndrome de eternas adolescentes, de botinha e coxas de fora, animando crianças de olhares perdidos, conversas de pessoas confinadas que não tem o que dizer, entrevistas com pessoas que estiveram confinadas e que continuam sem ter o que dizer, e por aí afora. A sala tem pouca iluminação, já nem sequer tem aquelas revistas semanais atrasadas. A luz que falta e o ruído que sobra impedem que aqueles que trouxeram seus livros possam ler. As pessoas olham para a telinha, olham-se umas às outras e à sua própria condição. Com um livro na mão poderiam estar viajando, sonhando, apreendendo, conhecendo gente e lugares interessantes, idéias fascinantes, desbravando, questionando, maravilhando-se. Contudo, continuam sentadas olhando uns para os outros e para a telinha que cobra o tributo da dependência, da elaboração de frases feitas e ideias gastas.
A ideia de que livro é chato só pode partir de quem não sabe o prazer que a leitura proporciona. Assim, quero lançar aqui um pedido, ou vários: aos médicos, para que iluminem melhor suas salas de espera, o que, além de deixá-las menos lúgubres, permitiria que as pessoas pudessem ler enquanto esperam. Aos hotéis, para que não se esqueçam de colocar luz de leitura nos quartos. Uns e outros poderiam manter uma pequena biblioteca, ao alcance dos clientes. A concepção bastante corrente em nosso país de que diversão está sempre e necessariamente ligada ao ruído e ao álcool só pode partir de alguém que não gosta de fato do Brasil. E ele ainda merece uma oportunidade. Ou não?