Por Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
Advogado criminal
“Quanta coisa eu contaria se pudesse e soubesse ao menos a língua como a cor.”
Portinari poeta
É muito difícil, e complexo, retornar à tal normalidade democrática depois de 4 anos de fascismo imperando no país. Algumas teias que, de maneira invisível, amparavam e sustentavam o humanismo na sociedade foram rompidas. De uma forma, às vezes, imperceptível, mas com uma imensa capacidade de destruição do tecido social e das relações democráticas. Perdemos, talvez de modo irrecuperável, afetos que nos acompanhavam no dia a dia. Alguns até silenciosamente, mas que estavam ali, ao alcance da mão, muitas vezes servindo como rede na hora do tombo. O fascismo é assim, entranha na alma e revela o que de pior existe em cada um. Todos nós temos algo que precisamos cuidar, e muitos se perdem ao serem capturados pela barbárie.
Nessa eterna resistência, cada um tem uma maneira de se resguardar e de alimentar o que de humanista existe em nosso ser mais profundo. As camadas sobrepostas de civilização vão se avolumando ao longo da vida e acabam por dar o contorno do que nos define enquanto pessoa. Existe um círculo de giz invisível que, por um lado, nos prende; mas, por outro, nos dá certo limite do que podemos fazer na sociedade. É através das nossas ações diárias que vamos consolidando nossa definição por um país que precisa permanentemente afirmar seu compromisso civilizatório. O autoritarismo deixa marcas profundas e traiçoeiras depois que finca suas garras.
Existem várias formas de resistência democrática e o afeto é, talvez, a que mais fala direto ao coração. Entre os dias 23 e 27 de agosto, ocorreu, em Paracatu, Minas Gerais, o primeiro Festival Literário Internacional da cidade (Fliparacatu). Os homenageados foram Conceição Evaristo e Mia Couto, mas, na realidade, todos os que lá compareceram receberam de maneira muito envolvente uma forte onda de carinho, de solidariedade e, até, de amor.
Com o tema “Arte, Literatura e Ancestralidade”, os organizadores, Afonso Borges, Tom Farias e Sergio Abranches, conseguiram reunir um grupo que parecia já ter feito alguma travessia anterior e interior. O festival promoveu uma emocionante exposição com a curadoria de João Cândido Portinari, Portinari Negro, com 42 telas que emolduravam a praça em frente à Matriz. De uma beleza rara! E a ideia genial de fazer um concurso entre estudantes, crianças e jovens de desenho e de redação com o tema da exposição. A entrega dos prêmios foi tão tocante quanto as palestras. A alegria dos alunos e dos professores contagiou a todos e vários autores falaram da experiência que eles tiveram quando participaram, ainda crianças, de competições semelhantes. Uma viagem ao passado.
Mas o que mais impressionou foi a magia que abraçou e encantou a todos pelas ruas e pelos lugares do evento. Não apenas os autores. Havia um clima envolvente entre os funcionários e os milhares de moradores e visitantes. Foi como se quiséssemos deixar a alegria extravasar para ficar claro às sombras fascistas, que ainda rondam o país, que será também pela arte, pela poesia, pela literatura e pelo riso que faremos do nosso Brasil um lugar mais justo e mais humano.
Os canalhas não suportam poesia e nós deixamos certa provocação no ar ao cantarmos até de madrugada nos bares da cidade. A proposta da escritora e editora Simone Paulino, de colocar um livro em cada bolsa família, resume um pouco nosso espírito de resistência literária e democrática. Como nos ensinou Conceição Evaristo, no poema Da calma e do silêncio:
“Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.”