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Vidas vividas importam

Mariana Amado Costa

Clichê

Hoje, 2 de julho, é dia do aniversário de minha avó, Zélia Gattai, uma especialista em se reinventar. Ela teria vivido esse novo normal com galhardia, criando mil atividades e interagindo à distância com grande desenvoltura. Seria uma experiência a mais para quem passou por muitas tempestades perfeitas com graça, força e uma pitada de drama, para não negar o sangue italiano.

Pronto, consegui matar no primeiro parágrafo os três maiores clichês da crise atual, o que me propus a fazer na tentativa de exorcizá-los. “Tempestade perfeita” teria certo glamour, se não fosse proferido por dez entre dez comentaristas da Globo News, todos os dias.

Revisei um texto que falava quatro vezes em “fazer do limão uma limonada”. Por mim, não teria sobrado nenhuma, mas como o autor gostava muito, sugeri que cortasse apenas três. O problema das frases feitas (e que tais) é que depois de um tempo as palavras se esvaziam de significado, ficando apenas a cacofonia ou, talvez para alguns, o conforto da repetição.

Heloísa Ramos, viúva do Graciliano, já bem doente no hospital, ouviu o afago de uma enfermeira, algo do gênero “Bom dia! Como a senhora está bonita hoje!”, ao que respondeu “Obrigada, meu bem, que beleza de lugar comum!”. O espírito de sempre, altivo e irônico, da querida Ló.

Velhice não é indignidade.

La nonna

Vencida a questão dos clichês, posso falar a sério da falta que me faz essa nonnina, que era como eu a chamava, e ela respondia “gioia, stella, tesoro!”, porque tínhamos a língua italiana em comum, um dos nossos infinitos laços.

Quando o Covid 19 tomou a Itália, que passou a ser o epicentro mundial da doença — a pandemia estava, então, sendo controlada na China —, falava-se ainda que os casos graves e as mortes se limitavam aos idosos e àqueles com comorbidades. Foi a primeira grande angústia que esse coronavírus me causou: o medo da perda da geração dos meus avós.

Brincamos em casa, meio a sério — imagino que como tantos brasileiros diante da ameaça crescente de termos um Estado autoritário no país —, sobre a possibilidade de um exílio voluntário. Pensei, então, que poderia me candidatar a uma vaga de nonna.

Etnia

Certa vez, assisti a um evento na Procuradoria Geral da República sobre a PEC 215, uma Proposta de Emenda à Constituição que atentava, sobretudo, contra os direitos territoriais indígenas (e dos quilombolas, alcançando também unidades de conservação: a sanha destrutiva da Bancada do Boi do Congresso Nacional é insaciável).

O auditório estava lotado de índios, dos mais diferentes povos. Quem entrava assinava uma lista de presença, com nome, contato e etnia. Coloquei, sem titubear, Pataxó, pensando em meu avô, que se orgulhava dessa nossa ascendência pelo lado de sua mãe. A intenção não foi uma apropriação cultural (essa invenção que, por vezes, acaba discriminando ao contrário), mas uma vontade de comungar de um mesmo sentimento que nos reunia ali.

Curiosamente, entre Gaviões, Yanomamis e Caiapós, lia-se, aqui e ali, na folha, “etnia: funcionário público”. Achei cômica, mas também triste, essa maneira como alguns servidores se identificavam — ou, quem sabe, se diferenciavam, sem conceber nenhuma identificação com aquelas pessoas. Pareceu-me um vazio existencial.

Ancestralidade

A noção de ancestralidade é muito preciosa para os indígenas. Não somos ninguém, nem nada, sem nossos ancestrais. O direito que têm às suas terras vai muito além de uma herança material, não é apenas o lugar de sua morada, do qual tiram seu sustento. O território é parte deles e de sua identidade, porque lá estão enterrados seus ancestrais. E lá, seus ancestrais ainda vivem.

No Candomblé, é a ancestralidade que identifica os filhos de santo com seus Orixás. Oxóssi, o caçador, o rei da mata, é meu ancestral, como o é de meu avô.  E vovô  é Oxóssi, assim como eu sou. Talvez por isso me sentisse e me desse tão bem com vó Zélia.

Memória atávica

No livro O clã do urso da caverna (The clan of the cave bear), a autora, Jean M. Auel, tendo feito uma pesquisa científica extensa sobre o tema, muito louvada pelos especialistas, conta a estória de uma menina Cro-Magnon (Homo sapiens, como nós) criada por um grupo de Neanderthais.

O ritual mais importante e secreto do clã Neanderthal é o transe induzido por uma beberagem, que proporciona a regressão paulatina na história evolutiva, até o estágio de uma única célula. Dessa maneira, na fantasia de Auel, experimentavam uma plenitude existencial, terrível e maravilhosa, e assim aprendiam, de forma atávica, sobre a vida.

Os Cro-Magnons talvez pudessem ter a mesma experiência, já que Ayla, a protagonista, precisando preparar a bebida, cuja receita aprendeu com sua mãe de criação, a curandeira do clã, acaba tomando um pouco e realizando, assustada, a viagem. Quem sabe também somos capazes de encontrar essa memória de mundo dentro de nós e só nos falta descobrir como?

Generosidade

Ela me viu nascer e nosso amor é para sempre. Quando chegamos em casa, depois do longo e exaustivo velório de vovô — meu marido e eu ficamos com ela aquela noite —, sentou-se na poltrona que era a dele. Perguntei se podia lhe massagear os pés, disse que sim. Esse gesto de se deixar ser cuidada, sem orgulho nem pudor, foi para mim de uma generosidade tocante, por compartilhar a intimidade daquela imensa dor.

Passado e presente

Queria não ter ouvido, tantas vezes, nos últimos meses, que “só morrem os velhos”. Vovó me faz tanta falta! Mas, por outro lado, é uma presença constante, porque sou como a terra em que estão enterrados seus ossos, ela vive em mim.

Sem ela, sem quem se lembre, é como se nunca tivesse existido a cidade de São Paulo em que uma mulher ia de porta em porta, em plena Alameda Santos, vendendo da ordenha de sua cabra o leite matinal. A nonna era uma memorialista que sempre viveu o presente. Não havia nenhuma melancolia saudosista no que contava. O que havia era o orgulho e a alegria por sua vida vivida.

Mariana Amado Costa é comunicadora, jornalista e trabalha com políticas públicas para o meio ambiente. Gosta de pessoas, plantas, bichos, música e livros.

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