Sobre ideias e sonhos

Mariana Amado Costa

Meus sonhos costumam ser recheados de sensações, que alcançam todos os sentidos. Sinto cheiros, dor e prazer, tristeza, medo — que na infância era pavor —, vejo cores em diferentes paletas, ouço músicas, exerço (com excelência inaudita) meu parco poliglotismo. Sei, por me contarem, que, enquanto durmo, eu canto, rio, choro, grito e, até mesmo, falo elfo.

São sonhos muitas vezes complexos, com diferentes formas narrativas, em que me encontro como personagem (ou personagens) ou como observadora — intrigada, confusa ou onisciente. Às vezes, eles se sucedem como se fossem vários episódios ou releituras de uma estória. Lembro de muitos sonhos por anos, a alguns dos mais marcantes dou títulos, como Pérola negra e Vovó é uma lagarta de fogo.

Recordá-los em maior ou menor quantidade, assim como o nível do detalhamento, depende muito do ambiente e da rotina: no mato é sempre mais intenso do que na cidade, e acordar sem despertador permite aplicar um método que fui aprimorando ao longo da vida, mas no qual estou, infelizmente, muito enferrujada. Difícil explicar, é ir acordando devagar, sem deixar que se vão as sensações e acolhendo de bom grado os pensamentos confusos do momento híbrido entre sono e vigília. Assim, vou puxando um fio que vem trazendo as lembranças.

Noite passada, mamãe, eu e mais duas ou três pessoas desconhecidas estávamos num elevador, quando ouvimos um barulho de estouro, seguido de cheiro de queimado, e o elevador começou a cair. Procurei me agachar para evitar que a espinha perfurasse o cerebelo no momento do impacto e tentei explicar isso à mamãe, para que ela fizesse o mesmo, mas não consegui, porque a situação exigia muita atenção, não dava para falar ao mesmo tempo. Percebi depois de um pouco que a queda era muito lenta (embora fosse queda livre), o que trouxe dúvida sobre se a morte seria ou não certa. Estancamos de repente, sem maior problema, e as portas se abriram — curto alívio. O edifício estava pegando fogo, devido a uma explosão, e a situação era de “salvese quem puder”. Não chegou a ser interessante, o despertador tocou e interrompeu abruptamente a experiência.

Vejo dessa forma os sonhos, como experiências vividas, bem reais. Enfim, um prato cheio num processo psicanalítico. Mas queria mesmo falar da livre associação de ideias e não sei como os sonhos se impuseram. Ou melhor, sei sim, por uma livre associação de ideias (como queríamos demonstrar, haha), já que ambos servem à interpretação do inconsciente.

Pois, hoje é dia das crianças, o que não me interessa minimamente e provavelmente nem teria lembrado do fato se nas Lojas Americanas, onde fui comprar chocolate meio amargo para fazer cookies semana que vem, não estivessem tocando músicas infantis das mais horrorosas, tipo “não maltrate o gati-nho-nho”. Pensei se a moça do caixa seria obrigada a ouvir aquilo todos os dias, então me dei conta de que é feriado e, apesar disso se dever ao dia de Nossa Senhora Aparecida, não é o que importa ao comércio.

Mais tarde, recebi uma mensagem com uma foto e um textinho, como se fosse o Bozo escrevendo sobre a infância dos filhos. Achei a piada fraca, mas a fotografia, que já tinha visto, trouxe à mente, pela segunda vez, a mesma comparação. A esposa de Bolsonaro na época, mãe dos seus filhos mais velhos, está muito parecida com a Mia Farrow quando mais jovem. Parece mais com ela, por exemplo, em Hannah e suas irmãs, um de meus preferidos dentre os que fez com Woody Allen, perdendo na minha estima, talvez, para Sombras e neblina.

Mas não pensei nos filmes de Allen na hora. Só depois, quando comecei a pesquisar fotos da atriz. O que veio na hora, assim como havia vindo da vez anterior em que vi a bela imagem de papai, mamãe e os três pimpolhos, foi a lembrança de que Farrow protagonizou um dos filmes sombrios do Polanski de que mais gosto, O bebê de Rosemary, em que a personagem título tem um filho com o Rabudo. Um dos poucos filmes de terror que vi e revi.

Perde para A morte e a donzela, este com Sigourney Weaver como uma ex-torturada pela ditadura argentina (ou chilena, não lembro) que reencontra, por acaso, seu algoz. O título vem da peça de Schubert, que era a trilha sonora das sessões de tortura. Pensando bem, engravidar do demônio e ser torturada talvez não passem de variações sobre o mesmo tema. Certamente, ambas passíveis de uma associação bem clara com o facínora que hoje preside o Brasil.

Coincidentemente, muitas presas políticas da ditadura militar brasileira ficaram na chamada Torre das donzelas, ala feminina no Presídio Tiradentes. Uma amiga querida foi encarcerada lá, assim como a ex-presidente Dilma Roussef.

O percurso foi do Planalto ao Planalto, passando pelas Americanas da esquina, Nova Iorque, Europa, América Latina, São Paulo, numa rápida viagem. Isso me faz pensar que as idéias (ainda) são livres. E que a arte nos alimenta e nos irmana, talvez a maneira mais fraterna de compartilharmos ideias e sonhos.

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