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Punição e educação

Por Áurea M. Guimarães e Carolina Roig Catini
Áurea é professora do Departamento de Ensino e Práticas Culturais da Faculdade de Educação da Unicamp; Carolina, do Departamento de Ciências Sociais e Educação da Faculdade de Educação da Unicamp.

Artigo originalmente publicado pelo site ComCiência

Escrever sobre a história das punições na educação não é uma tarefa fácil, pois não há uma única forma de contá-la. Vários caminhos podem ser escolhidos. Um deles seria nos embrearmos pela historiografia tradicional, buscando a gênese da punição no decorrer linear do tempo histórico da educação. Um outro percurso seria nos apoiarmos em autores que nos mostrem como a disciplina das crianças e dos jovens foi e continua sendo construída. Escolhemos o caminho de expor momentos emblemáticos que podem trazer à tona diferentes aspectos para a compreensão da atualidade, porque são as práticas da punição na educação que irão nos dar pistas para situá-las enquanto elementos que sintetizam as contradições de relações sociais, políticas e econômicas.

As práticas de punição aparecem com maior evidência enquanto forma de poder estatal, sobretudo pelo caráter maciço de suas práticas de gestão dos conflitos sociais e pelo uso de seus aparatos de repressão, encarceramento, comunicação, educação etc. Mas não se limita a essa esfera, uma vez que a prática punitivista abrange uma multiplicidade de formas de governo no tecido das relações sociais das famílias, escolas, locais de trabalho, prisões, igrejas etc. Isto é, depende da ação de atores sociais empenhados em aplicar punições e castigos para a manutenção da ordem social ou para “civilizar costumes” sobre os sujeitos aos quais impõe submissão, e que tanto podem viver um processo de alienação, dobrando-se sem questionar os castigos recebidos, quanto desviar-se, reapropriar-se, resistir de maneiras variadas aos componentes opressivos. As práticas punitivas, desse modo, não se referem somente à execução objetiva de prescrições normativas impostas pelo Estado, mas respondem a uma série de determinações advindas do jogo das relações de poder.

Para o campo da educação é fundamental observar a emergência de relações modernas entre sujeitos da prática educativa, desnaturalizando a noção de infância e juventude e, consequentemente, a produção histórica e social de práticas distintas de inserção social e formação entre as gerações. Um largo processo histórico é percorrido desde a inexistência da particularidade infantil do século XV, quando a criança ingressa cedo na “vida dos adultos”, separando-se completamente deles no século XX e percorrendo um longo preparo para a vida social até ser considerada como “sujeito de direitos” e objeto privilegiado da educação. Dentre outros elementos fundamentais que alteraram o modo de estudar a história da educação, Ariès (1981) demonstra que a “a família e a escola retiraram juntas a criança da sociedade dos adultos”, enclausurando-a, privando-a da circulação e impondo a ela “o chicote, a prisão, em suma, as correções reservadas aos condenados das condições mais baixas (Ariès, op.cit., p. 277-278).

Mas é necessário destacar que havia imensa diferença entre a formação da infância nas diferentes classes sociais que, a partir do século XVIII, marcam mais fortemente a distinção. Para Varela e Alvarez-Uria (1992, p. 75-76) é preciso relacionar o estatuto da infância com um projeto político de dominação, uma vez que a infância “rica” será submetida à autoridade e aos regulamentos para assumir melhor, no futuro, as funções de mando, de governo, enquanto que a infância pobre ou “rude” só virá efetivamente a existir como objeto público de intervenção do Estado nas “táticas empregadas no recolhimento e moralização dos meninos pobres”. Assim, se as práticas punitivistas na educação vão se diferenciando para cada segmento da população, é crucial a percepção de que a formação da burguesia com a privatização da vida pela organização familiar de um lado e, de outro, com a socialização especializada pela escola, confere um caráter particular para a infância a ser educada que se difunde entre outras classes sociais no decorrer do tempo, por diversas relações de força, sobretudo pela intervenção estatal. A consolidação das instituições disciplinares conta com o processo de aprimorar a noção da “criança bem-educada” diferenciando-a dos moleques, desordeiros, vagabundos, foras da lei, filhos de trabalhadores e trabalhadoras.

Neste ponto, é necessário destacar o papel do Estado no processo de consolidação do capitalismo diante dos processos de expropriação e organização do trabalho livre, que ocorreu em momentos distintos e com “coloridos diferentes” em cada nação, mas que demandou muita violência numa história “inscrita nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo”, como diz Marx n’O capital. Para que o trabalhador e seus filhos, que se tornavam “livres” de outras formas de servidão que marcaram outros modos de produção, mas também “livres” dos meios de produção que lhes foram expropriados, se submetessem às exigências do trabalho assalariado foi necessário muito investimento na mudança de hábitos com repressão, punição, violência física e disciplinamento.

Não é por acaso que as instituições disciplinares que já existiam foram transformadas, de tal modo que “as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação” (Foucault, 2002, p. 118), desenvolvendo técnicas em função de uma necessidade de produção de “utilidade dos indivíduos”. Por meio de formas de sujeição constante, passa a se criar uma relação na qual o emprego do poder disciplinar “fabrica” os indivíduos, tomando-os “ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” (Foucault, op.cit., p. 143), cindindo-os na sua aptidão e obediência.

Assim, “se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada” (Foucault, op.cit., 119). Com isso são transformadas as práticas jurídicas, penais, punitivas, escolares, militares etc., na medida em que se consolidam as “novas formas de acumulação de capital, de relações de produção e de estatuto jurídico da propriedade” (Foucault, op.cit., p. 74). Tornar os corpos dóceis e aplicar todo o tempo da vida institucional em atividades úteis, de maneira minuciosa e constantemente vigiada, eram alguns dos objetivos dessa prática. Note-se que a organização do tempo com caráter disciplinar é fundamental, já que o tempo de trabalho é a substância da produção de valor e a forma econômica de uso do tempo, um tempo individual que precisa estar em conexão com o tempo social e conta com a prática escolar para sua difusão (Thompson,1998). O tempo passa a ser elemento de punição pelo atraso e descumprimento de metas estabelecidas por prazos, como na organização fabril. Inicia-se, com isso, a prática de organizar o trabalho no interior das escolas populares e das casas de detenção que abrigavam os “vagabundos” com o intuito de realizar efetivamente uma “pedagogia universal do trabalho”, com diversas vantagens para o Estado, que contribuiria para formar os trabalhadores, fazendo de cada instituição disciplinar “uma pequena sociedade reduzida, simplificada e coercitiva onde aparecerá claramente a máxima: quem quer viver tem que trabalhar” (Foucault, op.cit., p. 101).

Essa forma disciplinar se articula a uma outra tecnologia, que Foucault denomina como poder biopolítico, já que se generaliza como mecanismo de gestão e se exerce sobre a massa da população. Os corpos são observados, analisados, modificados por uma administração calculista que visa o controle e a gestão mais efetiva das populações. A demografia, o cálculo de faixas etárias, taxas de mortalidade, o estudo das relações entre crescimento da população e da riqueza, o desenvolvimento de formas de educação e os treinamentos profissionais exercem um papel de extrema importância nesse processo no qual a população passa a ser o objeto privilegiado de atuação do poder. Afirma-se não somente a sujeição dos corpos, como também o ajustamento dos fenômenos da população aos processos econômicos. Seu alvo é atingir os corpos e as forças dos membros da população, como também a subjetividade dos indivíduos que a compõem, tornando-os sujeitos governáveis. Aqui a lógica do liberalismo como forma de governo se manifesta na instauração da meritocracia e competição também nas instituições escolares, nas quais a punição se desloca para o fracasso, exclusão, estigmatização daqueles que não alcançam os objetivos no tempo previsto e mensurado pelas avaliações. As práticas de dominação ajustam regras “para um jogo econômico em que os únicos parceiros e os únicos agentes reais devem ser os indivíduos ou, digamos, se preferirem, as empresas” (Foucault, 2008, p.238). Todos os riscos que possam ameaçar esse complexo esquema empresarial estarão na mira dos dispositivos de segurança. Em nome dessa segurança é que a população exigirá maior rigor da lei, intervenção policial nos espaços públicos, punições mais severas para os suspeitos de não se adequarem à racionalidade dominante.

Na metade do século XIX e princípios do XX, com a institucionalização da escola pública obrigatória, parte de seus objetivos se volta para transformar os filhos das classes populares em trabalhadores dóceis e submissos. Práticas médico-pedagógicas influenciarão os educadores a considerar perigosos e nefastos os modos de vida das crianças pobres e a valorizar o contexto familiar e social das classes poderosas.

É preciso destacar que os castigos físicos demoram a ser deixados como método principal de dominação – sobretudo nas sociedades escravocratas nas quais as escolas e instituições disciplinares herdam uma larga tradição de tortura e mesclam a dominação da posição econômica com o racismo, que se manifesta de modos distintos –, perpassam toda a história da educação e permanecem na atualidade.

À medida que os castigos corporais passaram a ser questionados mais veementemente, outras modalidades de punição o substituíram, adquirindo características menos físicas e mais psicológicas, porém não menos violentas. Não iremos desenvolver aqui a gestação de novas formas de se empregar práticas punitivas, ocorrida principalmente nos períodos de governança mais democráticos, quando uma nova concepção de educação passou a exigir mais atenção à higiene, à saúde, à socialização da vida escolar, a uma formação mais sistemática e oferecida em etapas. Gostaríamos de analisar um outro momento emblemático, o nosso tempo, e com isso tentarmos delinear mais elementos para a reflexão sobre essa articulação entre punição e educação, uma relação que permanece inacabada.

É preciso traçar, em linhas gerais, diversos mecanismos que parecem configurar novas formas de penalização das camadas populares na atualidade. Essas penalidades estão conectadas às necessidades do Estado, e de outras instâncias fundamentadas em tecnologias de regulação, fortalecedoras da atuação do Estado, de gerir os conflitos sociais e produzir modelos de “pacificação social” e, ao mesmo tempo, atender às demandas da própria população por programas de assistência social relacionados à maior precarização do trabalho e dificuldades de reprodução da vida social. Tudo isso num tempo de maior recrudescimento das punições pela judicialização dos conflitos sociais e das próprias relações escolares, colocados em funcionamento em nome da “ordem” política, econômica e da “segurança” individual.

Não se pode deixar de mencionar aqui as formas de controle voltadas ao conteúdo da educação e desejos de punição de educadores e educadoras que se manifestam em projetos de lei como o “escola sem partido”, dentre outras medidas que estão sendo alvo de disputas e indicam uma tendência de inserção de maior controle sobre os processos formativos. Mas centremo-nos em uma nova lógica que tem se desenhado no último período e que recoloca um caráter punitivo relacionado à criminalização da pobreza, num tempo de expressivos confrontos os quais fazem retornar a necessidade de controle social e produção de nova estabilidade.

Embora o sistema de ensino ainda deixe crianças, jovens e adultos excluídos, o fato é que até hoje a escolarização nunca havia atingido quantidade tão grande de pessoas. Apesar da média do tempo de escolarização ter se ampliado e das sociedades, cada vez mais, terem expandido os anos que a população passa dentro de relações escolares, paradoxalmente a ampliação do acesso não significou o crescimento da qualidade da educação pública e da formação de crianças e jovens, gerando necessidade de qualificação para além da escola, muitas vezes travestida na fórmula de “educação integral” com a promessa de qualificação profissional e pessoal. É como se houvesse um esvaziamento dos conteúdos educativos e um alargamento do tempo de socialização escolarizada, mas que se desenvolve em conjunto com a criação de todo um sistema paralelo de educação. E como esse processo se relaciona com práticas de punição?

Pela articulação de programas de assistência social com o ensino público, em grande medida, se transformam as práticas de punição em medidas de proteção social orientadas, segundo estudo de Marília Spósito (2008), por um “novo paradigma” de educação para camadas populares a partir de novas formas de interação da educação escolar e não escolar. Muitos desses programas assistenciais se sustentam num tripé que articula transferência de renda, frequência obrigatória na escola e nas atividades de educação não formal e contrapartidas dos educandos em programas de “engajamento em atividades comunitárias” (Spósito, op.cit., p.89), submetendo crianças e jovens a uma tutela em tempo integral, pela “ação intencional de duas redes educativas” (Spósito, op.cit., p. 90). Não obstante, ambas se desenvolvem de maneira precarizada, com parcos recursos e com fortes indícios de que as atividades não contribuem muito para a melhoria da qualidade da formação, mas certamente para um enclausuramento expandido no tempo. Ainda associam atividades voltadas para o “empreendedorismo” e formas de inculcar a responsabilidade por empregar-se em projetos que geram renda para a autossubsistência, com a obrigatoriedade de realizar trabalhos comunitários, num modelo que se assemelha muito à aplicação de medidas socioeducativas a jovens em situação de “liberdade”.

Aqui, a lógica punitivista de criminalização da pobreza, como forma de gerir suas demandas por meio de políticas focais para população em situação de vulnerabilidade social, conforme Loïc Wacquant apresenta em Punir os pobres (2003), parece fazer sentido. Sobretudo se considerarmos que essa mesma juventude pobre e negra das periferias, alvo das políticas de assistência social no Brasil, é a parcela mais punida pelo desemprego advindo da crise econômica, pelo encarceramento em massa, pelas novas ondas de espoliação e pelo índice alarmante de violência policial e mortes que caracterizam um verdadeiro genocídio praticado pela Estado na figura da polícia militar.

Hoje assistimos processos claramente punitivistas que incluem novas formas de violência evidente do Estado e do conjunto de instituições abrigadas por ele contra a população pobre, contando com o retorno às diversas formas de militarização das relações sociais, seja diretamente, com presença militar nos morros e favelas e com ressurgimento de escolas militares, seja indiretamente, com práticas disciplinares rígidas que vão se redesenhando em diversos espaços. Contamos também com formas de punição menos visíveis que se consolidam, mesmo que a punição não se desenvolva no próprio espaço educativo, mas na circulação dos sujeitos da educação em diversos espaços sociais.

E aqui, novamente, a noção de biopolítica tem concretude exacerbada, tanto pelos mecanismos de controle, pela produção de dados objetivos através do cadastro de todos os usuários de benefícios sociais, que auxiliam a organização das políticas públicas; quanto pelas práticas educativas que necessariamente impõem formas de engajamento individual, contribuindo para manter o funcionamento de um sistema meritocrático e punitivo. A “máquina disciplinar” não cessa de se reorganizar por estratégias de biopoder, com formas de subjetivação das relações neoliberais, expandindo-se em diferentes tecidos societários. Mas as cartas do jogo de poder só estarão colocadas todas à mesa quando consideramos os mecanismos de resistência, que também não cessam de ser produzidos pela organização da não submissão e criação de outras formas de sociabilidade.

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MILTON LEITE BANDEIRA
6 anos atrás

Juiz de Fora, 30 maio 2017
Se os olhos e os ouvidos da nação se dignarem a se dirigir para a transição de uma ‘JUIZ DE FORA PASÁRGADA’ (FORA DA VERDADE E DA LEI) para a ‘JUIZ DE FORA NAÇÕES – A TERCEIRA MARGEM DO RIO PARAIBUNA’ os educadores do Brasil e do mundo muito se beneficiarão, sobretudo pela recente ‘DENUNCIA’ ao presidente do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais por defensor dos direitos e deveres humanos (11/5/2017).

Nela se PROVA substancialmente o fim desta REPUBLICA AUTOFÁGICA, DO FAZ DE CONTA E DO RABO PRESO, DO ROUBA MAS FAZ, DO SAPO FERVIDO, DO DESCONHECIMENTO E DO DESCUMPRIMENTO DA LEI, – onde até as pedra começaram a falar, no sentido de que no seu bairro Poço Rico os populares chamarem de ‘PRAÇA DAS CAVEIRAS’ a ‘praça da Republica’, pelo fato de ficar em frente ao cemitério municipal. Outra coincidência irônica é que na Praça da Republica, 21 funciona a representação do Partido Político do ‘PMDB’, do Imperador ferroviário, – Prefeito BRUNO SIQUEIRA, mesmo Partido do presidente MICHEL TEMER.

DA CIDADE QUE PRECIPITOU O GOLPE MILITAR DE 31 DE MARÇO DE 1964, QUERENDO SE REDIMIR DESTE PASSADO.

MILTON LEITE BANDEIRA
DEFENSOR DOS DIREITOS E DEVERES HUMANOS
CONSULTOR DIREITO SOCIAL MIITAR E 3º SETOR BRAZILINDIO
PROMOTOR MOBILIZADOR CULTURAL
PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DE DEFESA DO DIREITO DA ARTE E CULTURA (ASSDAK)

32 – 3237-9365

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