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Nakomitunaka e o Deus Negro

Por Ana Miranda
Artigo publicado originalmente no jornal O Povo, 12 de fevereiro de 2022

“Ah, eu continuo me perguntando, Zambi, eu estou me perguntando, Javé, estou me perguntando, de onde vem a pele negra? De onde vem uma pessoa negra? Quem são nossos ancestrais? Jesus, filho de Deus, é branco, Adão e Eva são brancos, todos os santos são brancos, por que é assim?”

Bela, melancólica, profunda, a canção Nakomitunaka, cantada pela congolesa Ancy Kiamuangana, no idioma lingala. Muitas pessoas estão ouvindo, em homenagem a Moïse Kabagambe, o congolês assassinado no Rio. Significa: Eu continuo a me perguntar. Foi o pai de Ancy quem compôs esse lamento, o saxofonista Verckys Kiamuangana. Ouvi já muitas vezes, sempre me toca os sentimentos, e fico pensando: se eu tivesse nascido uma menina branca e entrasse na igreja e todas as imagens fossem negras…

E todos os sacerdotes fossem negros e a minha religião fosse perseguida e malvista por ser de brancos. Se meus antepassados tivessem sido escravizados, arrancados de sua terra. E as mulheres brancas fossem desrespeitadas e abusadas. Se brancos fossem condenados à pobreza e eu vivesse com a minha família numa favela de brancos, com policiais matando brancos apenas porque eram brancos e, por princípio, brancos eram bandidos e os presídios estavam cheios de brancos. E a cada vinte minutos matassem um branco porque ele era branco, matassem meus irmãos, amigos…

E a meu pai restassem os trabalhos humildes, e minha mãe seria doméstica na casa de negros, tratada “como se fosse da família”, e tivesse de dormir num pequeno quarto dos fundos, e os vizinhos negros me olhassem com desprezo, indiferença, superiores a mim, porque a minha pele era branca. E quando eu andasse na rua, pessoas me olhassem com medo porque eu era uma “barata descascada”. E os personagens dos desenhos, dos jogos, os protagonistas de filmes, novelas, das propagandas, atrizes e atores fossem os mais belos negros e os branquelos feiosos fariam apenas personagens humildes, como lixeiros, faxineiras, cozinheiras. Bruxas brancas, fadas negras, príncipes negros, Branca de Neve seria Noite Estrelada. Os outdoors fossem repletos de negros levando uma vida de glamour que inventaria um sonho, e eu passasse fome e catasse lixo para dar de comer a meus filhos.

E na escola os professores fossem negros, e as crianças negras corressem ao me ver, com medo da minha pele branca. E nas universidades eu precisasse entrar por cotas, e fosse necessária uma luta antirracista porque havia racismo contra a raça branca. E os médicos, advogados, engenheiros, filósofos, arquitetos, cientistas, diretores de empresas, os prefeitos, governadores, presidentes, todos fossem negros e a maioria deles, racista contra brancos. E se os anjos fossem negros, o diabo branco, e as palavras de claridade, branqueamento fossem pejorativas. E a língua dos meus ancestrais fosse esquecida. E a poesia fosse negra, negra a literatura com seus personagens inesquecíveis. Haveria apenas um escritor branco, o maior de todos, e escurecessem sua pele nas fotos para esconder sua branquitude. Eu fico pensando assim, ouvindo Nakomitunaka. Quem sabe responder?

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