Funk e Bolero

Por Mariana Amado Costa

Outro dia, numa conversa casual — almoçando com amigas do trabalho, quando isso ainda era possível —, ouvi críticas ao que seria uma hipersexualização da dança, no funk. Fiquei surpresa com o tom de repulsa dos comentários. Será que me iludi, durante toda a vida, e a dança não é sexo? Nem a música, nem a arte? Não digo que sejam exclusivamente sexo, mas o são completamente.

Do mesmo modo que sou uma pessoa, mas também sou um corpo, sou sentimentos e pensamentos, um animal mamífero e onívoro (não podendo descartar peremptoriamente nem mesmo o canibalismo: se um dia me vir nos Andes, sobrevivente de um desastre aéreo, como garantir que não comerei o passageiro ao lado, que morreu congelado?). Desse jeito: não sou apenas um corpo, mas meu corpo não é apenas parte de mim, sou eu inteiramente. O mesmo vale para os sentimentos e pensamentos.

Veio em mente, enquanto ouvia aquelas manifestações de desgosto sobre o funk, a imagem de Jorge Donn dançando o Bolero de Ravel no filme Les uns, les autres, do Claude Lelouche. Uma das cenas mais belas e intensas que tive o prazer de ver. O prazer e a dor, essa dupla inseparável (talvez por isso a forma romântica de se referir ao orgasmo como petite mort).

O Bolero é puro êxtase, crescendo em exaltação, sem nunca chegar a um anti-clímax. Emoção quase insuportável, como quando vejo quaresmeiras em flor numa mata, e vem o ímpeto de me misturar e desfazer naquela cor violeta. Jorge Donn dançando o Bolero é o que há de mais andrógino, mais belo, doce e violento, é tudo e é o contrário também. É tão sexual, despudoradamente sexual, quanto uma bunda empinada rebolando dentro de um micro short.

Uma de minhas irmãs me disse, pouco depois do massacre em Paraisópolis: deveríamos estar lá, protegendo aquelas pessoas com os nossos corpos. Sim, é preciso proteger suas vidas, sua dança, seu prazer e sua dor, com nossos corpos e também com nossos pensamentos e sentimentos, em nosso cotidiano, em nosso trabalho, no que dizemos às outras pessoas, como faço agora. Queria que minha irmã contasse essa estória com suas gravuras.

O que tomam por vulgar e grosseiro, vejo como provocativo, irônico e sensual, fruto de uma necessidade imperativa. Como não estamos lá (nem mesmo nós, que nos importamos), sabem que lhes resta pouco tempo. O gozo e a morte, tão urgentes, tão presentes.

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