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Facebook: o achatamento de nossas vidas

Artigo de colunista português questiona a rede social na vida moderna.

Por José Vitor Malheiros
Publicado pelo jornal Público PT 

Não é preciso ser Fernando Pessoa nem sofrer de personalidade múltipla para ser várias pessoas. Todos somos várias pessoas. Todos temos várias versões do nosso eu, várias personae, que activamos e desactivamos ao longo do dia conforme as circunstâncias e os interlocutores, que modulamos automática mas precisamente no espaço de uns segundos, de forma a obter o máximo benefício possível das nossas interacções com os outros. Não mostramos a mesma personalidade quando falamos com a nossa namorada ou com o pai da namorada. Não falamos com os nossos filhos como falamos com o nosso chefe no trabalho. Não contamos as mesmas anedotas à nossa mãe e aos colegas do trabalho. Nem sequer somos os mesmos com os amigos do futebol e os amigos da universidade. O nosso tom de voz muda, a atitude corporal muda, o olhar, as interjeições, o léxico, a maneira de rir.

Vivemos bem com esta multiplicidade de eus. Satisfaz-nos as várias facetas da personalidade. Podemos ser reflectidos e atrevidos, tímidos e espalhafatosos, sérios e brincalhões, prudentes e aventureiros, serenos e frenéticos, todas essas coisas que todos somos.

Na vida real podemos ser uma coisa para cada pessoa, uma pessoa para cada circunstância. Sem que cada um saiba como somos para os outros. Mas nas redes sociais tudo muda.

E muda porque na web usamos apenas uma personalidade. Sim, é verdade que podemos criar vários avatares, heterónimos com vidas próprias, cada um com os seus gostos e idiossincrasias, mas só quem tenha realmente tentado fazê-lo sabe como isso é difícil de gerir. Tão difícil que rapidamente se abandonam os heterónimos. Quando comecei a usar o Facebook também o tentei fazer, criando um perfil profissional e outro pessoal – muita gente que ainda o faz – mas a dificuldade começa na definição das fronteiras. Os dois mundos têm demasiadas intersecções, há demasiadas coisas que queremos partilhar com ambos. E há muitas coisas que só queremos partilhar com um subconjunto de um desses mundos, ou com um subconjunto dos dois – os que são do nosso clube, os amantes de poesia… É demasiado complicado, ingerível. Enganamo-nos, publicamos isto sob a personalidade do outro, trocamos amigos. Exige a paciência de um obsessivo e mais tempo livre do que temos. Começamos a meter as mesmas pessoas nas duas redes e os dois grupos acabam por ficar iguais um ao outro, acabamos a assumir que somos só um, com tudo ao molho, com amigos que não se falam uns aos outros, cheios de contradições e gostos heterogéneos.

Na vida real podemos dizer tudo mas apenas uma parte a cada um. Nas redes dizemos tudo a todos, ao mesmo tempo. Há um achatamento de todos os planos da nossa vida num único, como quando fazemos flatten num programa de desenho. Sim, é possível seleccionar, criar grupos, definir privilégios, escolher com quem se partilha o quê – mas, mais uma vez, já o tentaram fazer? É possível, mas trabalhoso. Acabamos sempre por concluir que não vale a pena. Para quê? Não temos nada a esconder!

Esta é, para mim, uma das principais características do Facebook: a perda (relativa, não absoluta) da multidimensionalidade das nossas relações. Quando falamos no Facebook dizemos mais do que gostaríamos, porque dizemos tudo a todos. Claro que satisfaz o nosso voyeurismo (“Olha, a Maria faz culturismo!”) e claro que há demasiada informação para que toda a gente repare em tudo o que nos diz respeito. Estamos relativamente protegidos pela densa nuvem de dados. Mas com um mínimo de atenção uma pessoa conhecida mas com quem habitualmente não partilharíamos informação conhece todos os membros da nossa família, onde trabalham e quando fazem anos, conhece as nossas ideias políticas, paixões clubísticas, preferências políticas e literárias, o que fazemos nas férias, que livros lemos, que filmes vemos e, claro, quem são os nossos amigos, colegas e conhecidos. E isto quando se trata de um amador. Porque um bom programa de data mining, daqueles que são usados pelos serviços de informações, consegue escavar mais fundo e concluir, pela análise textual do que escrevemos e pelo nosso ciclo de actividade online, quase tudo o que nos passa pela cabeça (estado de saúde, estado de espírito). Se tivesse Facebook George Smiley nunca teria precisado de sair de Oxford.

Qual é o problema? Para começar há (terríveis) problemas de privacidade. Há quem anteveja nos próximos anos uma epidemia de abusos em relação aos adolescentes de hoje que, impensadamente, se habituaram a viver na rede, em estado de e-comunitarismo total e permanente, partilhando pormenores íntimos e fornecendo, sem o saber, dados que podem prejudicar seriamente a sua possibilidade de obter uma bolsa, de conseguir um emprego ou uma promoção, de ter um empréstimo do banco, de fazer um seguro de saúde, etc. Pode não se tratar de algo muito violento. Numa sociedade relativamente aberta e com algumas protecções democráticas, como aquela em que ainda vivemos, isso pode não significar risco de prisão por crime de opinião ou condenação ao ostracismo devido às preferências sexuais. Mas significa que certas pessoas, com algumas fragilidades (uma tendência para a depressão, uma vida amorosa infeliz, uma família disfuncional, uma linguagem pouco cuidada, amigos pouco recomendáveis, atitudes demasiado assertivas, preferências heterodoxas de qualquer tipo, sejam elas vestimentárias ou alimentares), podem ter uma vida um tudo-nada mais difícil que as outras. Pode ser uma coisa estatística, um desvio ligeiro. Mas isso, ao longo dos anos, pode ir empurrando pessoas com determinadas características para novos guetos ­– bolsas de desemprego, de menor protecção social, menos acesso a todo o tipo de bens.

Mas isso não é tudo. Este achatamento dos vários planos da nossa vida numa comunicação cândida do que fazemos, pensamos, gostamos e desejamos, numa esfera aparentemente global, padece de dois defeitos: ela nem é suficientemente privada, nem totalmente pública, situando-se num limbo vago de meias-tintas relacionais e sociais.

O que estaremos a perder com esta insuficiência de intimidade, com esta escassez de silêncio, de recolhimento, de reflexão íntima, de modéstia, de introspecção, com estes novos hábitos de pensar-dizer e de sentir-dizer que se instalaram na juventude? Não sei. Mas receio que algo se perca de importante.

Por outro lado, se comunicar no Facebook é comunicar num novo “espaço público”, de infinitas e interessantes possibilidades, esse espaço é, de facto, fragmentado. Um conjunto de bolhas, que se intersectam e onde existem inúmeros vasos comunicantes, é certo, mas mundos independentes. Se é certo que se pode lançar uma informação no Facebook que dá a volta ao mundo num dia, é igualmente verdade que muito do que se passa aqui é absolutamente opaco para o mundo. É por isso que, apesar do Facebook, a imprensa e o jornalismo continuam a desempenhar um papel fundamental, na criação de um verdadeiro espaço público, verdadeiramente aberto a todos e partilhável por todos.

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