Por Ana Miranda
Romancista e atriz
Artigo originalmente publicado no jornal O POVO
Sonhei com crianças Yanomami e fiz um desenho: duas indiazinhas voando com asas de passarinho, uma delas segura uma planta desenraizada e a mão da outra se transforma em flor. Luas sangrentas no céu noturno. Tive conhecimento dos Yanomami nos anos setenta, pelas fotos de Claudia Andujar, um cotidiano nas profundezas da mata, beleza em penumbra com laivos de luz, sentimento. Desde então, fui sabendo desse povo, com encanto e angústia, a luta desesperada por suas terras. Sem cessar, ameaças brancas.
As crianças Yanomami levavam uma vida livre, com saúde, felicidade, sem medo a não ser de pequenos espíritos. Eram alegres, habilidosas. Juntas caçavam nos rios, nas matas, saltavam dos galhos nas águas, corriam atrás de vagalumes. Aprendiam logo o que precisavam para sobreviver. Nasciam fora da maloca, no mato, ou no pátio, mamavam até os quatro anos. Então se adornavam, os meninos furavam as orelhas e as meninas, um pouco mais tarde, apareciam com enfeites no nariz e nas comissuras da boca, onde espetavam hastes finas ou plumas. Lindas.
Desde cedo, os meninos saíam com um arco e flechas sem ponta. Logo já eram exímios caçadores, passavam o dia flechando pequenas aves, calangos, frutas doces. Sabiam os nomes dos passarinhos que viviam por ali. Mesmo os adultos os consultavam, quando queriam saber sobre um passarinho. Maiorzinhos, os meninos saíam com os pais para caçar cutias, pacas, queixadas, antas, veados, mutuns, macacos, cada dia mais longe. Seus olhos jovens, pretinhos e brilhantes enxergavam com apuro. Esqueciam aos poucos os nomes dos passarinhos, coisa de criança.
As meninas saíam para a colheita de banana-verde, frutas, aipim, mandioca, batatas, também catavam larvas e retiravam mel. Riam, brincavam soberanas na terra-floresta, uma entidade viva, farta. E se banhavam nos riachos e rios de água fria, sentiam o calor da terra, a umidade das árvores, a solidez das pedras; enquanto elas brincavam, brincavam os espíritos que as protegiam. Espíritos de pássaros, peixes, sapos, lagartos, tartarugas, borboletas, de todos os animais. Espíritos de árvores, folhas, cipós, méis silvestres, pedras, cachoeiras… Espíritos da lua, do sol, da tempestade, do trovão, do relâmpago. E os modestos espíritos caseiros, do cachorro, do fogo, da panela de barro.
Assim era a vida das crianças Yanomami, até que aconteceram os primeiros contatos com balateiros, piaçabeiros, caçadores, com soldados da Comissão de Limites e gente do serviço de proteção aos índios. Vieram a abertura de postos, as missões católicas e evangélicas que trouxeram destruição a suas crenças, tradições, e mortes por sarampo, gripe, coqueluche. Depois, a invasão de garimpeiros de ouro trazendo armas, malária, álcool, mercúrio nas águas, nos cabelos, estupros, prostituição, assassinatos… Crianças são sugadas pelos tubos das dragas, ou morrem ao fugir de disparos dos garimpeiros armados. Meninas são estupradas, mortas, afogadas.
Fotografias de crianças muito magras, doentes, barrigas estufadas correm o mundo. São nossas essas crianças. São nossos filhos, netos. São a imagem de nossa alma.