Câmera escondida

Do Observatório da Imprensa
Por Maura Oliveira Martins

Há um formato televisivo que, mesmo não sendo exatamente novo, tem sido bastante explorado em várias emissoras: os quadros jornalísticos (pois assim se anunciam) que, por meio de uma encenação feita por atores contratados, documentada por câmeras escondidas, buscam flagrar as reações de pessoas comuns frente a situações que supostamente testariam os valores morais destes indivíduos. Há, pelo menos, três quadros atualmente no ar que se sustentam nesta premissa: “Vai fazer o quê?”, do Fantástico, na Rede Globo, “Aqui se faz, aqui se ganha”, noPrograma do Gugu, na Rede Record, e um terceiro quadro no programa CQC , da Bandeirantes.

As propostas dos quadros se fundamentam basicamente na mesma ideia: a de que as pessoas são mais autênticas e espontâneas quando não sabem que estão sendo observadas. Quando sabemos que estamos sob o escrutínio do outro, vestimos, quase que automaticamente, nossas melhores facetas – ou acionamos os comportamentos e posturas que imaginamos serem o que o outro espera de nós. A pauta oferecida pelos quadros, portanto, é a suposta revelação daquilo que verdadeiramente se é. A ideia de que se trata de um “teste de solidariedade”, como várias vezes se fala, é justamente a de capturar o bem (ou o mal) daquele que ignora o fato de estar sendo filmado.

Bastante parecidos, os quadros diferem em suas especificidades, que refletem a natureza das emissoras e dos respectivos programas que os veiculam. Ou seja: no quadro do programa do Gugu, a narrativa da reportagem faz jus ao estilo popularesco da atração e apela aos sentimentos do espectador. Por exemplo, ao narrar a cena em que uma atriz idosa, carregada de sacolas, fica na beira de uma escadaria à espera de alguém que a ajude, o texto em off lido pela repórter,acompanhado de uma trilha dramática, diz: “A cena é de cortar o coração. Os maus bocados de nossa vovó não chamam muito a atenção de quem passa por ali.” Já o quadro do Fantástico, comandado pelo experiente repórter Ernesto Paglia, é mais sutil na sua abordagem, adequando-se ao padrão Globo.

Um tom mais agressivo e juvenil

Em comum, os quadros exploram uma visão simplória de ética e moralidade, equivalendo a índole da pessoa enfocada ao fato de cumprir (ou não) aquilo que as câmeras esperam dela. Na leitura rasa feita pelos quadros, é um bom cidadão aquele que age conforme o “roteiro” prescrito pelo programa – não por acaso, no quadro do programa do Gugu, o participante que cumpre este papel é convidado a ir ao palco do apresentador para concorrer a prêmios. Em mensagem gravada e veiculada por meio de um tablet, Gugu parabeniza o indivíduo pela ação solidária e por fazer um mundo “mais humano”. No quadro do Fantástico, os “aprovados” no teste de solidariedade também são congratulados por meio da visibilidade na principal emissora do país. Não por acaso também, os rostos dos que fazem o esperado é exibido; os dos que tomam outras atitudes é desfocado – certamente porque não autorizaram a exibição, o que também reitera a noção moral da “vergonha” daqueles que não se encaixam nas reações esperadas.

Esta moralidade simplória, por outro lado, adequa-se perfeitamente ao discurso televisivo, que normalmente enfrenta dificuldades para tratar de temas complexos. Por exemplo: um dos episódios do quadro do Gugu mostra uma criança sozinha, desagasalhada, em um ponto de ônibus. O quadro testa quantos parariam para oferecer um casaco ao menino. Engraçado que as mesmíssimas imagens serviriam para uma outra matéria (que seria igualmente redutora da realidade) que denunciasse a insegurança e o perigo que correm as crianças, visto que elas podem ser abordadas por qualquer um que passe na rua. O mesmo solidário, nesta abordagem simplista, passaria a algoz – basta mudar o discurso.

Já no CQC o tom é mais agressivo e juvenil, típico do programa. Num dos quadros exibidos, pega-se carona nos recentes episódios dos que “fizeram justiça com as próprias mãos” – os casos de assaltantes que foram presos a postes, agredidos e assassinados. No quadro, atores em pleno centro de São Paulo simulam a mesma situação: um suposto assaltante é amarrado na frente de uma galeria por dois homens raivosos em razão de ter roubado um celular. Uma mulher, que representa a assaltada, se junta ao grupo e afirma que a agressão é equivocada, pois aquele não era o assaltante.

O discurso de que há “humanos” e “não-humanos”

O resultado do quadro, comandado pelo repórter Erick Krominski, é interessante. Didaticamente, ele explica a diferença entre justiça e vingança, e entrevista aqueles que se manifestaram e se juntaram à horda de agressores. Faz perguntas aos enfezados que, no calor da situação, reagem como podem: alguns dizem que se juntaram à massa porque queriam “ver uma treta”; outros repetem frases do senso comum do estilo “fez, tem que pagar”. Mas me chamam mais a atenção certos questionamentos feitos pelo repórter aos intempestivos transeuntes: “Você não acha que seria melhor se a consciência geral fosse de não bater, e sim de procurar provas?” Ou esta pergunta: “Ele era inocente. Você acha que pode bater no cara só você achando que é o cara mesmo?”

Ou seja, na perspectiva de instigar uma reação mais “humana”, como diz Erick Krominski, as perguntas feitas no quadro silenciam seus outros sentidos: e se ele fosse culpado? E se houvesse provas? Isto me remete a um texto memorável da jornalista Eliane Brum, no qual discute a morte por linchamento de Fabiane Maria de Jesus, que foi confundida com um retrato falado divulgado em uma fanpage de Facebook. Parte da repercussão desta morte se deu pelo fato de que ela era inocente – o que deixa subentendida uma certa legitimidade ao ato caso não fosse. Este trecho merece reflexão: “É no discurso, às vezes subliminar, às vezes explícito, que é reeditado cotidianamente o pacto histórico de que há uma categoria de brasileiros que podem ser mortos – ou que ao menos seu assassinato seria justificável.”

Eu continuaria: na lógica da câmera escondida – e, mais especificamente, no sentido dado pelas emissoras às imagens capturadas – esconde-se um discurso de que há “humanos” e “não-humanos”, boas ou más pessoas. Isto não deixa de ser uma maneira de subestimar o público, ao oferecer a ele – e ajudar a perpetuar – uma visão de mundo redutora e profundamente maniqueísta.

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