Cinema e educação

Por Raquel Pacheco
Dra. em Ciências da Comunicação. Autora do livro “Jovens, Media e Estereótipos. Diário de Campo Numa Escola Dita Problemática” (Livros Horizontes, 2009). Coordena o projeto e o blog de cinema e educação Media e Literacia. Participa do projeto Dream Teens – FMH.  Membro do Interdisciplinary Centre of Social Sciences (CICS-NOVA).

Tenho a lembrança do tempo do colégio quando os professores diziam que iríamos assistir a um filme, era como se o nosso mundo dentro da escola finalmente fosse se abrir e o dia enfadonho de aulas se transformasse num dia especial. “Vamos todos para o auditório que hoje assistiremos a um filme” – disse, certa vez, a professora de educação moral e cívica. Nesta altura eu tinha 12 anos, fomos todos para o auditório que na nossa fantasia já havia se transformado numa sala de cinema. Abre-se então o cadeado da caixa de madeira, onde ficava guardada a televisão, e coloca-se uma fita cassete (VHS) no aparelho de videocassete, nada é dito, a professora não diz sobre o que fala o filme, só diz que temos que ter atenção ao que vamos assistir e que temos que fazer silêncio.

O filme inicia e o que aparece no ecrã da TV é algo muito distante da nossa realidade, é sombrio, triste e degradante. Uma bela jovem alemã, um pouco mais velha que o grupo, com 13 anos, viciada em heroína e que se prostitui. Estávamos a assistir o filme Christiane F., drogada e prostituída. O filme me causou uma sensação muito ruim, onde toda a magia daquele momento se transformava em um sentimento de repulsa e ao mesmo tempo de identificação.

Os sofrimentos daquela adolescente, que ainda tinha as feições de uma menina, todo aquele abandono e suas vivências no submundo de Berlim, não nos fizeram ter uma boa experiência com aquela atividade proposta pela professora.

Assistimos ao filme até tocar o sinal para nos avisar de que era hora de irmos para casa, não foi possível terminar de assisti-lo, e nunca mais voltei a fazê-lo. Saí daquela sala questionando os motivos que teriam levado a professora a nos colocar para assistir aquele filme. Mas o que hoje, após tantos anos, concluo é que houve uma ausência de informação, debate, diálogo e comunicação entre a professora e os alunos, houve uma relação de educação “bancária”, mesmo sendo o cinema o recurso didático escolhido para aquela aula. Com uma postura de quem olha de cima para baixo, a professora exibiu um filme (polémico) para uma turma inteira sem comentar sobre o que se tratava, sem prepará-la para aquilo que iria assistir e sem uma conversa/debate/diálogo no final.

A questão que talvez seja a mais séria de todas: Será que aqueles alunos estavam preparados para assistir aquele filme? Será que eu estava preparada para assistir ao filme? Não foi o meu caso. Mas este foi um dos poucos filmes de ficção (este era baseado na realidade e no livro homónimo, escrito pela própria Christiane F.) que assistimos neste colégio católico; de resto eram muitos documentários sobre a vida e obra de Dom Bosco, além de alguns documentários para ilustrar as aulas de História e Geografia.

Paulo Freire escreveu certa vez que “não basta ler que Eva viu a uva. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.” Acredito que esta afirmação de Freire cabe muito bem para a área da Educação e também do Cinema e Educação.

Entendemos que o cinema é um discurso imbuído de pensamentos e questões ideológicas, ou seja, representa os interesses de pessoas e/ou grupos que o produzem. Torna-se importante para que possamos discutir de modo mais aprofundado o cinema e a educação, falarmos sobre esta questão dos dispositivos construídos ideologicamente.

É de nosso interesse perceber como é que o conhecimento sobre a linguagem, a estética e os ambientes do cinema podem favorecer a literacia mediática que hoje passa por ambientes de convergência. Conhecer a linguagem do cinema e participar dos projetos de cinema e educação permite que crianças e adolescentes tenham uma outra visão do mundo? Como os jovens percebem, pensam e veem estes projetos de cinema e educação? Que tipo de sentimentos, questões e respostas, participar deste tipo de iniciativa suscita nos adolescentes? Que importância tem para um adolescente que tipo de influência causa, participar em um projeto destes?

O que observamos é a existência de uma visão funcionalista e utilitária do cinema. A proposta educacional ligada ao cinema e a educação, normalmente, tem o seu discurso pautado em toda uma proposta super avançada de ensinar a pensar, de não ensinar somente a reproduzir, mas na prática o que se vê são projetos que seguem um modelo ultrapassado e muito pouco eficaz de pedagogia e educação, há uma repetição da metodologia bancária (Freire) de ensino e aprendizagem.

Pela natureza da inserção do cinema na escola através do potencial formativo que ele possui é quase inevitável seu uso como um recurso (Fantin, 2007). É nesse limiar, entre o uso “escolarizado” que reduz o cinema a mais um recurso didático e o uso do cinema como objeto de experiência estética e expressiva da sensibilidade, do conhecimento e das múltiplas linguagens humanas que podemos repensar as dimensões do cinema e das pedagogias utilizadas nos processos de trabalho dentro do cinema e educação.

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Maria Thereza Alexandrisky
Maria Thereza Alexandrisky
8 anos atrás

Raquel, infelizmente ainda existem escolas e professores que, por motivos variados, traduzem sua decepção ao tentar assistir a um filme, no teatro de um colégio católico.

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