Por Ana Miranda
Romancista e atriz
Artigo originalmente publicado no jornal O POVO
O seu nome é Letícia, que significa felicidade. Conheci-a menina, mas ontem ela apareceu em nossa casa, plena adolescente, catorze anos. Cabelos longos, magra e flexível, longilínea, alta, de gestos demorados. Meio flutuante. Ao mesmo tempo distraída e alerta. Óculos, aparelho nos dentes, boné ao contrário. Vestia uma t-shirt preta com um disco-voador pousando numa cidade, com dizeres em chinês simplificado. Ela mesma poderia ser um ET descendo na China. Sua pele não tem tatuagens, nem ela usa piercings e coisas dessas tribos. Mas pinta as unhas de preto e desenha, nas pálpebras, um raio duplo que parece uma logomarca moderna.
Decidiu por si mesma não comer animais, é vegetariana. Ama os bichos, todos eles. Encontrou um besouro marrom e perguntou se ele sobreviveria naquela vegetação de areia, eu disse que sim, eles estavam por toda parte. Então Letícia o depositou cuidadosamente numa folha, com um carinho que me encheu de ternura. Seu pai disse que ela é defensora dos animais, sejam diminutos como formigas. Letícia não mata nem mosquitos. Ficou apaixonada pela gatinha Ricota, está tentando convencer o pai a terem um gato em casa.
Seu pai contou ainda mais. Letícia não usa canudos de plástico nem de papel, só os de metal, reutilizáveis. Tenta reciclar o mais possível. Saiu pela praia aqui com um saco e, enquanto se divertia, tirava da areia as garrafas pet e todos os despejos que encontrava. Preocupou-se com o destino do que recolheu, para onde seria levado. Evidente que, além de vegetariana, defensora dos animais e da natureza, tem sua posição política: antirracista, humanista, civilizatória, contra a barbárie que anda por aqui. Preocupa-se com os pobres e os vulneráveis.
Num texto que ela escreveu e seu pai me mandou, Letícia diz: “Eu não vou mais me calar, e nem deveria você. Vou dar a minha voz para os oprimidos serem ouvidos e tentar ajudar aqueles esquecidos”. Ou: “Desde quando geladeira abastecida virou privilégio? Vocês não conseguem ver que isso não passa de um sacrilégio?” Ela emite mensagens poderosas, amplificadas por sua força juvenil, sua pureza e uma crença inabalável de que pode melhorar o futuro da humanidade e o da Terra.
Não se interessa por coisas materiais; não é consumista, compra apenas o que realmente precisa; e questiona preceitos extremistas, mesmo religiosos. É cuidadosa ao pensar em ter seus próprios descendentes. Cultiva, me pareceu, uma inquietação existencial como se sentisse o peso do legado que a nossa geração lhe deixa, e sabe que os jovens têm de se preparar para uma missão difícil. Está sempre com um olho no smartphone e outro na realidade que a cerca. E o que é mais encantador: Letícia ama ler livros. Lê com fervor e assiduidade. Estava com um da Agatha Christie em suas mãos. Eu a vi olhando fascinada a minha biblioteca e lhe disse que podia escolher um livro para levar. Ela percorreu os títulos, finalmente tirou um – era Mistérios, de Lygia Fagundes Telles. Indecisa, pediu-me ajuda para escolher. Eu lhe sugeri Alice no País das Maravilhas. Sonho que existam milhões de Letícias neste Brasil.