Conversa franca, em Coelho Neto

Por Fernanda Fernandes
Do Portal da Multirio

Depois de observar o número crescente de alunas grávidas na E.M. Coelho Neto (6ª CRE), em Ricardo de Albuquerque, a professora Márcia Freire não teve dúvidas: era preciso ouvir, informar e orientar as meninas. Foi, então, que ela propôs à Direção da escola a disciplina eletiva Conversa Franca, voltada apenas para meninas do 8º e 9º anos – o que foi aceito prontamente.

A eletiva é semestral e já está em seu quarto ano. Os encontros acontecem uma vez por semana, no contraturno, e abordam temas como drogas – destaque para o álcool e o ecstasy, os mais comuns nos relatos –, racismo, empoderamento feminino, métodos contraceptivos, transtornos alimentares, homossexualidade, entre outros. “Começamos pela gravidez, mas abriu-se um leque enorme de assuntos. Elas escolhem sobre o que querem falar e, às vezes, ficamos duas ou três semanas no mesmo tema”, explica Márcia, que é professora da Sala de Recursos.

A turma é formada por cerca de 30 alunas, que se inscrevem no início do semestre. Então, a professora envia um documento sobre o que será abordado e solicita a autorização dos pais das alunas interessadas. “Montamos uma rede com o Programa Saúde na Escola (PSE Carioca), a Clínica da Família, o Programa Interdisciplinar de Apoio às Escolas (Proinape), mas precisamos do apoio e da participação da família”, reforça Márcia.

A professora conta que, normalmente, escuta mais do que fala. “Todo mundo quer ter alguém com quem se abrir, não ser apontado ou julgado pelo que fez e ter um auxílio. Juntas, formamos uma rede: o que eu falo elas podem falar para todos. Mas o que elas contam não pode sair daqui, senão vira fofoca. Tem dado muito certo e até os meninos ficam curiosos para saber o que se passa na sala.”

Segundo Márcia, os relatos são os mais variados. “Já tivemos depoimentos de meninas que sofreram abuso sexual, inclusive em casa, do pai. A automutilação é muito frequente, e até já perdemos uma aluna, que acabou se suicidando, no primeiro ano da eletiva. Além dos casos de violência, namorados que foram presos, colegas mortos em conflitos…”, diz a professora, ao ressaltar que a maior parte dos alunos da escola vive no Complexo do Chapadão. “Os responsáveis matriculam as crianças aqui porque essa escola é mais distante da comunidade. Então, é menor o risco de eles perderem aulas.”

Depois que os casos são expostos, a professora parte para uma conversa individual. “Pergunto com quem da família poderíamos falar sobre o ocorrido, para que elas não se sintam sozinhas em casa. Busco conscientizá-las e orientar sobre onde buscar ajuda e informações.”

Em sala, Márcia também organiza sessões de cinema seguidas de debate, propõe encenações teatrais e estimula que as alunas escrevam sobre o que estão sentindo. “Elas passam a se expressar melhor. Durante as aulas, descobrimos talentos, tanto no teatro como na poesia. Muitas integrantes do grupo de poesia da escola saíram daqui, inclusive. Também incentivo que escrevam diários e, caso queiram, me mostrem. Assim, consigo trabalhar até o texto.”

Outra prática adotada é a proposição de dinâmicas. “Uma vez, pedi que as meninas, durante um dia, cuidassem de um ovo, sem esquecê-lo, deixá-lo quebrar ou abandoná-lo. No final, uma esqueceu no banheiro, a outra deixou cair no chão e, a partir disso, eu perguntei: será que vocês estão preparadas para ter filhos? É isso que vocês querem?”, relembra.

Na visão das alunas, a eletiva é também uma oportunidade de trocar confidências. “Já aprendi muito sobre gravidez, a aula é muito boa, ensina coisas sobre o adolescente. E é mais legal ser só com meninas porque posso desabafar tudo o que eu quiser!”, conta Kellen Gonçalves, 13, aluna do 8º ano.

“É um diálogo entre meninas, conseguimos nos identificar umas com as outras e tudo o que falamos aqui fica aqui. Estamos expondo nossa vida, né? Quando tenho um problema, não consigo guardar para mim. Então, quando venho para cá, é a minha chance de desabafar. E as pessoas me dão conselhos. Tem gente que a mãe não orienta, mas aqui temos conversas para nos orientar”, comenta Janaína Cunha, 14, do 9º ano.

Em dois momentos no semestre, cerca de dez rapazes são convidados a participar de uma aula. “Elas escolhem os meninos que querem chamar e contam a eles como se sentem diante de várias situações. Eles, claro, têm o direito de resposta. As queixas são as mais variadas. Elas reclamam que eles são ‘galinhas’, eles dão a entender que elas são interesseiras e só querem voltar do baile com quem tem moto…”, exemplifica Márcia.

O sucesso da eletiva é tão grande que, ao final do semestre, ninguém quer sair da turma. “Tem até fila de espera para participar da eletiva!”, conta a professora, que até hoje participa de um grupo no WhatsApp com as alunas da primeira turma formada.

Outras escolas da região também se mostraram interessadas em replicar a ideia, criando eletivas similares, voltadas apenas para meninas e também para grupos mistos.

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Francisco José de Arimathea Gugik
6 anos atrás

Esse “fórum” permanente agrega muito conhecimento e orienta de forma segura os jovens que, ao contrário do que se pensa, tem tudo resolvido, pois tem acesso à informação, de forma rápida, em qualquer lugar e a qualquer tempo, porém informações não organizadas e ou não conectadas não representam possibilidade de construção do conhecimento, logo a interatividade proposta pela Prof Márcia Freire, além de estampar sociabilização, envolvimento e melhor assimilação dos assuntos discutidos, especialmente os que envolvem tabús, levam à compreensão ampla daquilo que cerca os jovens no dia-a-dia e que, por vezes, acabam sendo tragados por desvios comportamentais cumplicitários e a escola tem papel fundamental, quase que obrigatório, no trato desse chamado “Controle Social” sob os aupícios de uma “Conversa Franca”. O jovem poderia ter acesso às informações que precisa, e dessa natureza, em casa, no seio da família, porém os tempos, condições e “configurações” familiares mudaram, tornado-os “órfãos” temporais cotidianos e “filhos do quarto”, sem muitas possibilidades para praticar a assertividade em suas decisões, logo entregues a um mundo fragilizado e “soltos” podem se embrenhar por “caminhos tortuosos” e, talvez, dolorosos com variáveis impeditivas ou dificultantes do resgate e recuperação. Este é o meu pensamento e o meu sentimento. Fico ao dispor para esclarecimentos adicionais. Grato! Prof Francisco José de Arimathea Gugik.

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