Por Amir Labaki
Publicado em 23/09/2014 na edição 817 do Observatório da Imprensa
Diretor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários
O que têm em comum o fechamento da videolocadora da esquina de casa, em São Paulo, e o lançamento nos EUA daquela que será a última edição do mais popular dicionário de filmes do planeta? Ambos os modelos de negócio foram transformados em cinzas pela internet.
Localizada em Higienópolis, a HM Home Video já fazia parte do cotidiano do bairro quando cheguei, no começo dos anos 2000, em dois movimentados endereços, de um total de quatro lojas da rede. A matriz, que eu frequentava, reunia cerca de 15 mil títulos, apostando tanto nos últimos grandes lançamentos dos estúdios hollywoodianos quanto numa coleção de clássicos, filmes de arte, documentários e títulos nacionais. O único similar paulistano é agora a 2001 Video.
O fechamento da segunda locadora do bairro, há seis meses, já acendera o sinal amarelo. Um mês atrás, uma placa de “Passa-se o ponto” jogava a toalha. “Mantivemos aberto muito além do limite”, me disse um dos sócios, Hermínio Paschoal Filho, em meio à liquidação de cópias que levou compradores a esvaziar num par de dias as estantes preenchidas durante 27 anos.
Em 2007, o fim das atividades em lojas físicas da sucursal brasileira da gigante americana Blockbuster, o que no final do ano passado repetiu-se nos EUA, foi o primeiro grande símbolo do fim de uma era. Uma nova forma de consumo impôs-se rapidamente no mercado, por meio de operadoras de “streaming” digital de filmes como a Netflix e a multiplicação dos canais de TV por assinatura e suas crescentes plataformas digitais.
No fecho de uma crônica na “Folha”, em 18 de agosto, Leão Serva foi certeiro em destacar uma dimensão para além da cinematográfica do fechamento das locadoras: “Como será a vida sem locadoras, esse espaço público de afeto que se esvai”? Seu texto lembrou-me um comentário de Fernando Gabeira num de seus primeiros livros após a volta ao Brasil, quando indagava quem faria, no balanço da repressão e do exílio, o inventário dos afetos perdidos, dos encontros, beijos e abraços para sempre inviabilizados.
Nas metrópoles contemporâneas, com a esfera do trabalho invadindo ininterruptamente o cotidiano privado por meio da vida 24 horas on-line dos “smartphones” e “tablets”, somado, no caso brasileiro, à violência urbana disseminada, videolocadoras e livrarias representam oásis de sociabilização. Reencontros casuais e interações com desconhecidos quebram a rigidez das agendas e dos restritos círculos de amigos, familiares e colegas de trabalho. Com a progressiva desativação desses pontos de encontro, impera o enclausuramento em torno do novo totem: as grandes e pequenas telas frente às quais nos isolamos dentro de casa.
Contato tátil
Do ponto de vista da cultura cinematográfica, sem temer soar como um dinossauro reclamão, tampouco sou otimista frente à aparentemente avassaladora oferta on-line. Creio que perdemos, tanto em diversidade quanto em qualidade.
Nem mesmo a Netflix americana, que desembarcou na França nesta semana, apresenta um cardápio minimamente comparável ao de uma videolocadora antenada com o público mais cinéfilo. Não apenas por razões legais, éticas e estéticas, o acervo on-line de cópias piratas tampouco representa uma alternativa. Além disso, por melhor que seja a conexão com a internet e mais avançado o home theater, tenho dúvidas de que a curto prazo teremos por aqui uma experiência como espectador tecnicamente próxima à hoje possível com as cópias em blu-ray.
Deve-se também à internet a extinção do “Movie Guide” anual, do crítico americano Leonard Maltin. Aquela que será a última edição, com 1.632 páginas e cerca de 16 mil resenhas breves, acaba de ser lançada nos EUA. A primeira edição data de 1969, quando Maltin contava apenas 18 anos. Em 1978, seu dicionário de filmes tornou-se bienal e, em 1986, um evento editorial a cada começo de outono americano.
“Uma geração inteira cresceu acostumada a buscar informação em seus celulares ou computadores”, explicou Maltin em entrevista a Pete Hammond, um dos tradicionais colaboradores do guia, publicada sintomaticamente no site “Deadline Hollywood”. “Não são esses os consumidores potenciais de livros físicos de referência. Nossas vendas declinaram radicalmente nos últimos anos.”
Nada que surpreenda, com a facilidade de pesquisas on-line em sites especializados como o IMDb, gerais como Wikipedia e numa infinita blogosfera. Maltin já adiantou que não incluirá o “Movie Guide” nessa onda, pois seu estilo de “resenhas e informações concentradas” foi desenvolvido para o formato livro. “A internet tem um imperativo diferente e regras distintas.”
São mais sutis as as razões para lastimar-se o fim do “Movie Guide”. Como espectador cotidiano e crítico profissional, eu preferiria continuar combinando os dois modelos de pesquisa, somando a hierarquização subjetiva do guia de papel à multiplicidade informativa da internet. E perde-se on-line uma vantagem colateral: a leitura aleatória, com o correr dos olhos pela mesma página impressa, dos verbetes para outros filmes que não aquele pesquisado.
Uma última razão, reconheço de pronto, é eminentemente pessoal: a bibliofilia. Sou fascinado pela fisicalidade do objeto livro, pelo contato tátil com o papel, pelo ritual da virada de páginas. As videolocadoras podem estar condenadas, mas espero que se cumpra uma profecia do crítico americano Harold Bloom: “A aura que envolve o livro impresso jamais desaparecerá”.