Por Marcus Tavares
Na semana em que o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do Ministério da Educação, abriu as inscrições de obras destinadas a alunos e professores da rede pública, com a possibilidade, de pela primeira vez, as editoras poderem inscrever livros didáticos digitais, cujo acesso pode ser feito em computadores ou em tablets, a revistapontocom entrevista a professora Célia Cassiano, da rede municipal de ensino de São Paulo, que vem pesquisando há alguns anos o livro didático no Brasil.
Em 2007, Célia defendeu a tese Mercado do Livro Didático no Brasil: do Programa Nacional do Livro Didático à entrada do capital internacional espanhol, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde analisa duas décadas de implantação do PNLD.
Em entrevista à revistapontocom, Célia traz um resumo do trabalho, destacando os principais marcos da história do programa. Analisa também o livro didático na cultura digital e polemiza destacando que, em paralelo, ao livro didático impresso e ou digital, prefeituras vêm apostando em sistemas ‘apostilados/estruturados’ de ensino.
Acompanhe:
revistapontocom – Podemos traçar uma historiografia do livro didático no Brasil?
Célia Cassiano – O livro didático tem sua essência atrelada à cultura escolar. Portanto, pode-se reconstituir sua trajetória considerando a própria história da Educação Brasileira, se bem que, certamente, deve-se levar em conta que a forma do livro didático nem sempre foi aquela que conhecemos hoje. Por conta de a vida desse produto ser atrelada à escola, vale destacar que, além dos conteúdos pedagógicos contidos nestes livros e suas implicações curriculares (considerando sua produção e seu uso – autores, editores, docentes, alunos etc), há de se destacar também que incidem neste tipo de livro intervenções estatais (à luz das políticas públicas) e regulações de mercado (uma vez que os didáticos são editados por empresas privadas que visam o lucro). Assim, historicamente, controle estatal e influências comerciais nos livros didáticos vão variar conforme o período histórico analisado. Por exemplo, podemos considerar que quanto mais democrático um país for, haverá menor controle ideológico dos conteúdos didáticos pelo Estado. Quem não se lembra das denúncias recorrentes da “ideologia nos livros didáticos” nos períodos ditatoriais? Mesmo nos períodos democráticos, tais questões, por vezes, surgem. Nas minhas pesquisas, abordo a questão do livro didático na história recente do país, uma vez que estudo o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), no qual o governo brasileiro compra, de modo regular e planejado, praticamente 50% de todos os livros que circulam no país. Neste cenário, há dois grandes marcos.
revistapontocom – Quais seriam estes dois marcos?
Célia Cassiano – O primeiro marco dá-se em 1985, ano em que o programa foi criado. O PNLD fazia parte de outras políticas sociais instituídas pelo governo federal, que queria dar sua marca na redemocratização do país. Porém, neste período, a aquisição e a distribuição de livros didáticos, apesar de significativas, não eram universais (no sentido de atender a todos os alunos da Educação Básica da rede pública) e sequer tinham regularidade. O PNLD passa a ter universalidade na distribuição dos livros e regularidade nos recursos aplicados a partir do que considerei como o seu segundo marco, que se dá em 1996, à luz de reformas na educação, implementadas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. Nesta época, programam-se gradativamente a compra e a distribuição universal de livros didáticos (de todas as disciplinas escolares) para a Educação Básica da rede pública. A partir desse período, o governo brasileiro passa a ser o maior comprador de livros do país porque avalia, compra e distribui para os alunos matriculados na Educação Básica da rede pública, que representam 90% do total de matrículas. De acordo com o Censo Escolar, são aproximadamente 40 milhões de alunos matriculados na Educação Básica, sendo 36 milhões matriculados na rede pública. Segundo o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), em 2012, o governo investiu R$ 1.326,50 bilhões na compra, avaliação e distribuição de 160 milhões de livros didáticos. Estes dados possibilitam compreender o impressionante volume desse produto que circula anualmente no país. Com isso, entende-se, também, porque nenhum segmento no setor do livro tem um universo tão grande de leitores certeiros e regulares, como é o caso dos didáticos, constituindo-se num privilegiado campo de disputa das maiores editoras do país. Mesmo que usado de diferentes formas por docentes e alunos, podemos dizer que tais livros dão seu marco nos currículos desenvolvidos nas mais de 120 mil escolas públicas distribuídas por todos os municípios brasileiros.
revistapontocom – O livro didático, portanto, ainda é ‘a’ peça fundamental na Educação do país?
Célia Cassiano – Certamente pode-se dizer que o livro didático, hoje, ainda se constitui como importante recurso didático no país. Quando terminei minha tese, em 2007, mencionei que há lugares no país em que o didático é o único livro que algumas pessoas tinham acesso na vida. Lembre-se de que temos mais de 5.500 municípios no país, que apresentam realidades distintas. Um aluno da rede pública da cidade de São Paulo provavelmente terá mais condições de ter acesso a outros recursos – advindos das novas tecnologias, por exemplo – do que um aluno que estuda num município mais distante no Amazonas ou na Bahia. Vale destacar que a empresa os Correios já ganhou importantes prêmios mundiais por distribuir, com competência, o impressionante número de livros comprados, anualmente, por meio do PNLD, para as escolas púbicas do Oiapoque ao Chuí. Essa importância da garantia de acesso ao livro impresso, provavelmente, deverá ser alterada com as novas tecnologias, no futuro. Mas, certamente, ainda há um considerável caminho a ser trilhado no nosso país, se considerarmos as condições objetivas das nossas escolas públicas e as possibilidades de acesso de todos os alunos brasileiros.
revistapontocom – A quantas anda a qualidade dos livros didáticos brasileiros?
Célia Cassiano – O governo brasileiro só compra livros didáticos que atendam a uma série de critérios de qualidade (pedagógica e técnica) instituída anualmente em editais. Na instância pedagógica, quem avalia essa “qualidade” são comissões de técnicos vinculadas a diferentes universidades no país (que varia conforme a disciplina analisada) que aprovam ou reprovam os livros a serem comprados pelo governo. Atualmente, há vários programas de compra de livros governamentais, com suas respectivas normatizações, em que se consideram as especificidades do material a ser comprado para os diferentes níveis de ensino. Nessas avaliações, há critérios gerais e específicos para as coleções de livros de cada disciplina.
revistapontocom – Algumas escolas de São Paulo já pedem, como material escolar, tablet, para baixar conteúdos. O livro didático virá a ser substituído pelos formatos digitais? É um caminho sem volta?
Célia Cassiano – É inegável que os recursos das tecnologias digitais possibilitam mecanismos de interação, de pesquisa e de acesso a conteúdos acumulados e informações de forma muito diferente do que é potencializado pelo material impresso. Você dá o exemplo de algumas escolas de São Paulo que pedem tablet, mas eu estou no Amazonas (em Manaus) e o governo local está divulgando na mídia que comprou tablets para serem distribuídos e usados nas escolas da região. Também as escolas do município de São Paulo estão recebendo tablets para serem usados com os alunos (certamente, em número limitado). Ou seja, é uma realidade nacional e há muitas outras experiências neste sentido. Na minha concepção é, de fato, um caminho sem volta, mas, ainda assim, há um longo processo a ser percorrido neste sentido antes de se falar em “substituição dos livros didáticos impressos” pelos novos formatos digitais. As novas tecnologias são elencadas como elementos essenciais a serem considerados na escola, uma vez que, de modo geral, os alunos são nativos digitais e, mesmo com condição social menos privilegiada, são contemporâneos deste mundo tecnológico e globalizado e boa parte deles já usa as novas tecnologias de modo recorrente. Nesse contexto, há investimento pesado das editoras, uma vez que nenhuma delas quer ficar fora da compra governamental brasileira. Nos últimos editais do PNLD, já são pressupostos recursos que consideram a cultura digital junto aos livros impressos. No conteúdo dos próprios livros didáticos, as novas tecnologias já são tematizadas – a produção de e-mail e blog, por exemplo, são temas recorrentes nos livros didáticos, bem como nas indicações de bibliografia já são comuns sites e vídeos (youtube, por exemplo). Complementações digitais e assessoria das editoras, de modo online, aos docentes, também já constam, em alguns casos, como parte dos livros didáticos comprados pelo governo. Certamente, a sofisticação dessa assessoria é muito maior para as escolas privadas, uma vez que é mais garantido encontrá-las com recursos tecnológicos, o que nem sempre é válido para todas as escolas públicas do país. Em relação às novas tecnologias, há diferentes condições nas escolas públicas do país que, de modo geral, ainda não têm equipamentos e redes que atendam às atuais demandas a contento, nem docentes formados para uma mediação adequada. Certo é que a cultura digital já faz parte do universo escolar, de diferentes formas, tais como a criação de blogs, a elaboração de vídeos, o uso da internet para pesquisa e divulgação de trabalhos, a interação entre grupos por afinidades temáticas, o uso do celular como recurso didático para pesquisas e construção de materiais – fotos e entrevistas – por exemplo, entre muitas outras possibilidades. Assim, há um caminho sem volta para a maior entrada da cultura digital na escola, porém há ainda um processo a ser construído, que passa desde a aquisição e do adequado manuseio dos equipamentos pelos docentes, bem como pela formação desses mesmos docentes para fazerem uma mediação competente dos alunos junto aos meios e este é um dos maiores desafios da escola, na contemporaneidade. A aquisição dos materiais didáticos comprados pelo governo passa por considerar essa realidade das escolas brasileiras, como já mencionei.
revistapontocom – Como a senhora avalia o livro impresso no meio online?
Célia Cassiano – O conteúdo do mesmo livro, na cultura digital, deve apresentar nova linguagem, com as devidas adaptações pertinentes às novas tecnologias (interação, links para pesquisas e vídeos em lugar de muitos dos textos e imagens que seriam adequados ao material impresso), sendo que a construção de sentidos em um e no outro meio se dá de diferentes formas. A mera transposição de um livro didático impresso para o computador não implica que se trata de um “livro didático digital”. Como já se disse, a cultura digital abre novas possibilidades jamais imaginadas há poucas décadas. Há recursos de interação, de pesquisa e de inserção de links para vídeos e imagens, entre muitas outras opções, que devem ser consideradas na elaboração de um material didático virtual. Bons materiais didáticos virtuais, por exemplo, podem ser encontrados em vários cursos da Educação a Distância (EAD). Em dezembro de 2012, terminei de fazer a orientação educacional online de um Curso de Especialização em Língua Portuguesa, resultante da parceria entre a Unicamp e a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, cujos professores/cursistas eram docentes da rede pública estadual de ensino, a maioria, de Ensino Médio. Neste curso, uma das quatro disciplinas que dei foi, justamente, “Multiletramentos, Linguagens e Mídias”, em que discutimos como os docentes poderiam lidar com a inevitável entrada da cultura digital na escola. A maior parte do curso foi feita de modo online (com poucos encontros presenciais), com ambiente virtual preparado especificamente para ser online, sendo que o trabalho de conclusão de curso dos professores/cursistas foi a elaboração de um material didático. Muitos se valeram de elementos da cultura digital apreendidos no curso para elaborar um material com novos elementos do que os tradicionalmente conhecidos. Há, nessa mesma direção, várias iniciativas governamentais de formação de professores para o uso das novas tecnologias na escola, bem como vários programas governamentais que objetivam desenvolver habilidades dos alunos que garantam uma relação mais elaborada com essas novas mídias.
revistapontocom – Em paralelo aos livros didáticos impressos e ou virtuais, a senhora chama a atenção para o fato de surgirem cada vez mais os sistemas apostilados/estruturados de ensino nas redes públicas de ensino. O que seria isto?
Célia Cassiano – A questão é polêmica. Mesmo com uma gama de opiniões contrárias à implementação desses sistemas apostilados de ensino na rede pública brasileira, uma vez que não passam por nenhum tipo de avaliação governamental, a opção por tais sistemas não incide em ilegalidade, desde que a prefeitura que opte por tal produto informe ao governo, para que este não envie livros didáticos ao município por ocasião do PNLD, e que use verbas próprias do município para a compra do sistema apostilado. O que vemos hoje de modo considerável não é a substituição do livro didático pelos conteúdos digitais de forma generalizada, mas sim a substituição dos livros didáticos por estes “sistemas estruturados de ensino”, que têm sua história atrelada aos cursinhos pré-vestibulares e cuja metodologia proposta é a de um ensino calcado em conteúdos enciclopédicos que, historicamente, pressupunham a entrada nos tradicionais vestibulares das principais universidades públicas do país. Hoje, tais sistemas são vendidos para todos os níveis de ensino, inclusive para a Educação Infantil. Tal concepção pedagógica, de certo modo, é contrária a todas as possibilidades de interação e exploração potencializadas pelos novos meios ou por algum tema que interesse aos alunos. Nessa metodologia de ensino o conteúdo abordado nas apostilas (impressas) deve ser dado, obrigatoriamente, nas datas previstas pelos docentes que, nesse processo, passam também a ter pouca autonomia em sala de aula. Como parte do “pacote”, porém, há todo um processo de formação da editora, via web, bem como amparo pedagógico ao aluno e ao docente (via web, também). Apesar de todo aparato tecnológico no entorno desses sistemas de ensino, então, talvez possamos considerá-los como velhos produtos com roupa nova. E que apelo esses materiais têm! Em 2010, foram computados 165 municípios – dos 645 do Estado de São Paulo – que abriram mão de receber gratuitamente os livros didáticos por meio do PNLD para gastarem milhões de seus recursos próprios comprando sistemas de ensino de empresas como Positivo, COC, Objetivo, Expoente, entre outros oriundos das grandes editoras de didáticos, como Ática, Moderna, Saraiva, Scipione, entre outras. Nesse processo, os interesses comerciais das editoras são muitos e os ganhos advindos dessa venda são muito maiores do que os gerados pela venda dos livros didáticos. Um bom exemplo da força de negócios que representa a comercialização dos sistemas apostilados/estruturados de ensino é a entrada do gigantesco grupo britânico Pearson no Brasil, em 2010. Considerado um dos maiores grupos de educação do mundo, a editora Pearson entrou no mercado educacional brasileiro, no segmento dos materiais didáticos, ao adquirir os Sistemas de Ensino SEB (COC, Pueri Domus, Dom Bosco e Nane), além de já ter significativa participação na Companhia das Letras. De fato, o mercado escolar brasileiro é muito atrativo, não só pelos números que apresenta, mas também pelas suas possibilidades de crescimento (diferentemente dos países europeus, por exemplo, em que as taxas de natalidade, via de regra, caem ano a ano). Além, é claro, de as compras governamentais apresentarem grande apelo aos interesses comerciais implicados na venda de materiais didáticos e na prestação de serviços para o setor público que, por vezes, extrapolam o interesse meramente pedagógico que deveria balizar a questão do ensino público. Nesse contexto, o recente crescimento desses sistemas apostilados/estruturados de ensino no país vem sendo objeto de preocupação e de problematização recorrente por parte dos profissionais da gestão pública federal e chamam a atenção, inclusive, pelo grande poder de investimento que esses grupos que, hoje, dominam a venda de materiais didáticos no país, apresentam, além de possuírem sofisticadas opções calcadas nas novas tecnologias que, inegavelmente, representam o futuro nas escolas. Mas devemos ficar atentos para não comprar “gato por lebre”.
Vejo essa distribuição de livros um pouco complicada, porque o governo gasta bilhœs com livros didático e os mesmos náo são valorizados por parte dos usuáruos. E outra polémica, os gestores não estão tendo sua autonomia para escolha dos livros conforme a realidade de sua escola.