Por Marcus Tavares
Por preconceito e desconhecimento, a educação prisional brasileira, dever do Estado e direito dos cidadãos, vai sendo promovida à margem do dia a dia da sociedade. Ao que parece, a educação transformadora, que poderia contribuir para a ressocialização dos detentos, é negligenciada. Considerado por muitos como privilégio e não como direito, o ensino no sistema prisional apresenta deficiências e uma série de problemas. O principal deles: o acesso. Segundo dados do relatório Educação nas prisões brasileiras, de 2009, apenas 18% da população carcerária do país estudam. No Rio, dos 35 mil detentos, somente 5,6 mil internos frequentam as aulas das escolas prisionais, localizadas nas próprias instituições. De acordo com Maria do Socorro Martins Calhau, coordenadora do projeto Do Cárcere à Universidade, uma das linhas de ação do projeto de extensão da Faculdade de Educação da Uerj, faltam escolas, incentivo, apoio, comunicação, respeito e cumprimento do direito à Educação.
“Infelizmente, esse tema não é caro à sociedade, pois não se discutem as questões de Justiça e Direitos, mas, em vez disso, se cultiva a vingança. Nós que trabalhamos no sentido de defender o direito dos detentos à educação queremos que eles cumpram a pena, que se aplique a lei. Eles têm, sim, que pagar pelo crime, mas têm, por outro lado, o direito de mudar de vida, de estudar. Depois de eles pagarem pelo que fizeram, de acordo com o que prevê a legislação, o que farão? Essa ideia de que os presidiários ficam pouco tempo na prisão é errônea. Estão lá jovens, negros e pobres, em sua maioria, esquecidos pela família, pelo Estado, privados de liberdade e de educação durante décadas. Neste sentido, sabemos que a educação é libertadora, é transformadora dentro e fora das grades. Não defendemos o crime, mas o direito à educação, a oportunidade de redesenharem suas vidas”, avisa Socorro.
O projeto Do Cárcere à Universidade tem o objetivo de promover ações que auxiliem os estudos dos detentos no ensino superior. Hoje, qualquer interno pode se inscrever no vestibular oferecido, por exemplo, pela Uerj. Num levantamento realizado em 2011, a instituição contabilizava 17 estudantes do sistema prisional. “Número pequeno por conta do preconceito, da falta de comunicação e de um apoio jurídico, que poderia auxiliar os interessados nos estudos. Os que são aprovados têm direito aos estudos, mas, por estarem no regime fechado, não podem frequentar. Apenas os que cumprem regime semiaberto vão às aulas, não sem muita dificuldade e burocracia do Estado. O ideal seria termos um corpo jurídico que fizesse uma revisão no processo para ver se aquela pessoa já pode progredir para o regime semiaberto, uma vez que se encontra aprovado. Eis a nossa meta”, destaca Socorro.
O estudo Educação nas prisões brasileiras comprova o que Socorro afirma. O levantamento revela que 95% dos detentos brasileiros são pobres ou muito pobres. 65% são negros. Aproximadamente, dois terços cometeram crimes que não envolveram violência. Somente 8,9% cometeu homicídio. 60% são jovens, com idade entre 18 e 29 anos. Cerca de 8% são analfabetos e 70% não completou sequer o Ensino Fundamental. A taxa de reincidência é alta: gira em torno de 50 a 80%.
“Daí a necessidade de apoiar aqueles que decidem investir o tempo nos estudos. Primeiro, por uma questão de direito. E segundo por uma questão de sabedoria. É talvez a única chance que têm de transformar suas vidas”, frisa Socorro.
Nos bastidores
Vanusa Melo, professora de Língua Portuguesa, faz coro às palavras de Socorro. Militante na área, Vanusa conhece como ninguém a realidade diária de uma escola de ensino prisional. Há cinco anos, ela leciona no Colégio Estadual Anacleto de Medeiros, que fica no presídio Evaristo de Moraes, o conhecido Galpão da Quinta, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Neste ano, ela atende 35 alunos, matriculados no 6º, 7º e 8º anos do Ensino Fundamental.
“O presídio em que trabalho é o chamado seguro de vida, pois encarcera homens que, por algum motivo, solicitaram ou lhes foi determinado pela Secretaria de Administração Penitenciária que recebessem proteção de vida. Isso significa que muitos casos têm relação com crimes de natureza sexual, mas isso não é uma exclusividade, há várias outras situações, incluindo, por exemplo, sujeitos que têm problemas com criminosos ligados a facções do chamado crime organizado. Não sabemos o tipo de crime cometido, a menos que perguntemos ou que falem espontaneamente. Mas eu prefiro não lidar com essa informação no meu trabalho de professora. Até porque seria um pouco complexo pensar na ideia de gravidade de alguns delitos”, explica.
No dia a dia da sala de aula, Vanusa vem tentando trabalhar com diferentes linguagens. Em 2010, promoveu uma oficina de literatura. No ano seguinte, começou um projeto embrionário de cineclube. E no ano passado deu início ao projeto Cartas para Romeu, com os alunos do 8º ano e da 1ª série do Ensino Médio.
“O projeto surgiu quando resolvi exibir o filme Cartas para Julieta. A ideia era conversar sobre a importância do gênero ‘carta’, que estava trabalhando nas aulas de português. Além disso, alguns alunos solicitavam assistir a filmes que não tivessem temática social. Conjuguei as duas coisas, um pouco a contragosto, não porque não costume trabalhar temas diversos, mas porque achava o filme apenas razoável. Acho que é um filme que pretende falar de amor e destino, mas limitado nessa proposta. Em compensação, tem uma bela fotografia. Quando terminei a exibição, que foi bem silenciosa – o que me chamou atenção, porque é muito comum que os alunos passem o tempo da exibição fazendo pequenos comentários, geralmente descritivos –, todos os estudantes, homens com idade entre 24 e 60 anos, estavam bastante emocionados, alguns com os olhos marejados”.
Vanusa viu que aquela experiência não poderia passar em branco. Lembrando-se do enredo do filme e das atividades de leitura que já tinham realizado com a seção cartas de leitores ao “Doutor Alberto Godim”, psicanalista que responde às cartas na Revista de Domingo, do Jornal O Globo, a professora propôs ao grupo um projeto no qual cada estudante assumisse o papel de conselheiro, a exemplo de Godim.
“Propus que ensaiássemos uma vez com uma carta fictícia e que depois usássemos cartas reais, feitas por meus alunos da escola privada onde trabalhava. Toparam. Fiz então a proposta aos alunos da escola particular, uma turma de 2ª série do Ensino Médio, que, nas aulas de Redação, estava também estudando o gênero carta. Não se tratou exatamente de uma coincidência. Os programas de Português em séries diferentes muitas vezes coincidem. De um lado, tinha adultos encarcerados, com experiências de vida complexas e nem sempre exposta. De outro, jovens estudantes de uma escola privada da classe média do Méier”.
O resultado foi bem interessante. Os estudantes da escola privada escreveram cartas para os detentos, expondo suas angústias e questões. Em resposta, os internos trouxeram suas próprias experiências, ressaltando a importância de os jovens revisitarem, de uma forma transformadora, suas vidas e os problemas com seus familiares e com sua própria escola.
Mas a atividade não parou por aí. Num segundo momento, Vanusa estabeleceu nova ponte. Desta vez, com seus amigos, de diversas formações. Propôs, via Facebook, que cada um colaborasse mandando uma carta para cada ‘Romeu’, para cada interno.
“Expliquei o processo e recebi 14 cartas de homens e mulheres, todos dispostos a colaborar com a ideia e curiosos por receber a resposta. Essa novidade deixou os alunos ainda mais empolgados. Para alguns, tratava-se de um contato real com o mundo externo, especialmente para aqueles que não recebiam visitas. Um deles trocou correspondência com uma interlocutora que se queixava da idade avançada que a impedia de ser mãe. Ela se sentia triste, pois já tinha engravidado e tivera um aborto espontâneo. Não tinha um companheiro com quem dividir o sonho e isso dificultava tudo. Meu aluno tratou de pesquisar a possibilidade de tratamentos alternativos, pediu a esposa, que o visita com frequência, que levasse material sobre tratamento por acupuntura. Muito bacana”.
O trabalho com as cartas começou em julho de 2012 e ainda está em andamento, mas agora como atividade extraclasse, pois Vanusa não leciona mais para a antiga turma de 8º nem para a turma de 1ª série. A professora pretende repetir o trabalho com as atuais turmas.
Segundo ela, todos os envolvidos experimentaram conhecer ideias de universos ignorados ou conhecidos superficialmente. “Quanto a mim, fica fortalecida a ideia de que é nas práticas voltadas para o real e para a interação com o mundo, sobretudo na escola dos privados de liberdade, que está o maior sentido da escola. De outra forma, fica impossível pensar em práticas educacionais relacionadas à liberdade. Para os sujeitos do mundo tido por livre, espero que fique o encontro com ideias de internos do sistema penal, ideias não vinculadas ao crime, para, quem sabe, evidenciar a certeza de que ninguém é uma coisa só o tempo todo”, finaliza.