Carnaval e escola

O samba-enredo pede passagem na sala de aula. Artigo de Helena Cancela Cattani.

Por Helena Cancela Cattani
Historiadora e pesquisadora do carnaval do Rio Grande do Sul.

Quem descobriu o Brasil? Foi seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval? Como, se antes houve Colombo, Duarte e Vasco da Gama? E tem mais: o português “descobriu” ou conquistou? Quando, afinal, começa a História do Brasil? O que há de história na versão oficial?

O ensino dos eventos ocorridos por volta de 1500 fica muito mais instigante quando inclui esse tipo de questionamento. Além de aprender História, os alunos são levados a refletir sobre o próprio processo pelo qual ela é construída, em diferentes versões ainda hoje reproduzidas.

Melhor ainda quando essa discussão historiográfica aparece em linguagem popular, no embalo dos versos de sambas de carnaval:

Partiram caravelas de Lisboa,
Com o desejo de comercializar
As especiarias da Índia, e o ouro da África
Mas depois o rumo se modificou
Olhos no horizonte, um sinal surgiu
Em 22 de abril, quando ele avistou
Se encantou

(Imperatriz Leopoldinense, 2000)

Pois o tratado eu sei que existiu
Viajando foi às Índias
Vasco da Gama o navegador
(Foi quem comandou)
O acordo foi fechado
E novamente a Europa desfrutou
Então Cabral partiu, oficializou
Rezaram a missa como o rei mandou

(Acadêmicos do Salgueiro, 1995)  

Mesma temática, diferentes formas de abordá-la. Enquanto o samba-enredo da Imperatriz enfatiza a visão mais tradicional do “Descobrimento”, o Salgueiro questiona algumas “coincidências” que cercam aquele período, como a assinatura do Tratado de Tordesilhas em 1494.

Sempre às voltas com assuntos históricos, os sambas de enredo funcionam como uma ferramenta didática diferenciada. Não foi à toa que, no final da década de 1920, as agremiações carnavalescas do Rio de Janeiro receberam o apropriado nome de escolas de samba. Embora haja controvérsia sobre o motivo original dessa designação, o fato é que essas “escolas” – hoje presentes não só no Rio, mas em outras capitais e até em municípios do interior – contam uma história em seus desfiles. É uma apresentação inédita e única, em que, por cerca de uma hora, apresentam suas versões carnavalizadas sobre fatos, eventos e personagens do passado – de figuras populares como Zumbi dos Palmares a soberanos como D. João VI, de revoluções marcantes, como a francesa, a temas mais particulares, como a história da cachaça. Por que não levar essas narrativas para dentro da sala de aula?

O samba geralmente provoca reações diferentes entre os alunos. Alguns, antes mesmo de entender a proposta, resistem por não gostarem do gênero musical. Outros se apressam a lembrar ao professor que os festejos de carnaval só acontecem em fevereiro, então não faz sentido ouvir sambas em outras épocas do ano. Superada esta ou aquela resistência inicial, o resultado é que a maioria das turmas que trabalham com esta proposta acaba por considerá-la muito positiva, e passa a interessar-se pelo tema após o início das atividades.

Até meados dos anos 1990, era obrigatório, nas escolas cariocas, abordar temáticas nacionais. E mesmo depois que a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa) aboliu essa exigência, a maioria dos sambas continuou privilegiando a História do Brasil. É esta abundância de enredos que permite a análise e comparação entre versões e abordagens de um mesmo assunto.

Datas marcantes costumam inspirar desfiles comemorativos. Foi assim em 1988, no centenário da abolição da escravatura, quando a Unidos de Vila Isabel apresentou um desfile intitulado “Kizomba, a Festa da Raça”, exaltando a luta negra. Seu samba cantava “Vem a Lua de Luanda/ Para iluminar a rua/ Nossa sede é nossa sede/ De que o apartheid se destrua”. Dois anos depois, estava oficialmente encerrado o regime segregacionista na África do Sul. Em 2007, a Porto da Pedra apresentou um enredo em homenagem àquele país, cujo samba (“Preto e Branco a Cores”) louvava o principal artífice político da conquista da igualdade racial: “Liberto permanece o pensamento/ Ele foi meu alento/ Quando o corpo foi prisão/ O nosso herói Mandela é”.

A alunos do primeiro ano do ensino médio foi proposta uma análise comparativa dos dois sambas. O debate inicial centrou-se na questão de como era possível traçar semelhanças e diferenças entre as composições, que abordam assuntos semelhantes, mas com quase 20 anos de distância. Depois de uma exposição, feita pela professora, de elementos importantes para a compreensão dos desfiles, a turma elencou seus argumentos considerando não só as letras, mas o enredo e os elementos gráficos utilizados. Divididos em grupos, os alunos pesquisaram o contexto histórico em que esses sambas foram produzidos: o ocaso do apartheid, no fim da década de 1980, e a importância socioeconômica da África do Sul dos anos 2000. Os sambas permitem ainda o debate sobre as realidades dos dois países e suas transformações políticas e sociais ao longo do tempo, a fim de se obter uma melhor compreensão acerca da identidade étnica negra.

O exercício de criação de uma linha do tempo, aplicado a turmas de 7ª série do ensino fundamental, também pode contar com a ajuda de sambas-enredo. Alguns deles fazem verdadeiros passeios pela história universal. Um exemplo é o samba de 1998 da Unidos de Vila Isabel, “Lágrimas, Suor e Conquistas em um Mundo em Transformação”. O enredo, de autoria de Jorge Freitas, apresenta a história da civilização ocidental, da pré-história à Revolução Francesa. A partir das informações fornecidas pela letra, os alunos identificaram fatos e eventos, e observaram a coexistência destes através do tempo: “A luz de Roma se apaga”, “O clero, a bem da verdade, julgava o herege na Inquisição”, “O homem avança no velho mar”, “Da burguesia surge o renascer”, “Na França movimentos radicais deram ao mundo outra mentalidade”.

É importante incorporar manifestações relacionadas às comunidades dos alunos. Eles passam a observar questões ligadas a seu meio social, e assim desenvolvem maior interesse pelas atividades propostas. Alguns alunos, por iniciativa própria, podem trazer sambas que consideram relevantes ou que foram compostos pelas escolas às quais pertence o seu núcleo familiar.

O uso do samba não precisa ficar restrito ao ensino de História. Interações com outras áreas do conhecimento, como Geografia, Literatura e Artes Visuais, enriquecem o trabalho e aprofundam a compreensão dos alunos. No livro Para tudo não se acabar na quarta-feira: a linguagem do samba-enredo”, o pesquisador Júlio César Farias realiza um estudo linguístico de sambas-enredo e propõe sua utilização no ensino de Língua Portuguesa.

Farias lembra que a linguagem dessas composições se transformou ao longo do tempo. Na década de 1930, elas se constituíam de pequenos versos e incluíam partes improvisadas por repentistas. Durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), os sambas ficaram mais longos e incorporaram temas ufanistas, com expressões eruditas adaptadas de livros didáticos, reproduzindo o discurso oficial. A década de 1960 marcou a inserção de temas folclóricos e ligados à cultura negra, e entre os anos 70 e 80 houve a aceleração dos sambas, para atender a desfiles mais espetacularizados, tendo lugar no Sambódromo e com transmissão pela TV. É quando o pesquisador percebe a “diluição poética” dos sambas, em nome de rimas mais fáceis para conquistar o público.

Ainda assim, as letras mantêm grandes atrativos para os estudos históricos, a partir de elementos da epopeia literária: o tema é anunciado, feitos heroicos são exaltados, personagens e passagens históricas, mitificadas.

Aspectos visuais do desfile, como as fantasias e as alegorias, podem ser analisados pelo viés artístico e histórico. A escolha temática para o desfile e o meio onde se inserem as comunidades carnavalescas, assim como as diferentes formas de celebrações carnavalescas no Brasil, unem aspectos históricos e geográficos. Além disso, a construção das letras dos sambas observa particularidades de determinados meios sociais, no tempo e no espaço.

Se o carnaval criou escolas para ensinar samba, por que o samba não pode virar instrumento pedagógico? Como cantou a Acadêmicos de Santa Cruz em 2007, “No tic-tac das horas/ Nosso samba vira história”.

Texto inicialmente publicado na Revista de História

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