Por Marcus Tavares
A quantas anda a relação entre a infância e a comunicação no Brasil? O debate faz parte da agenda pública do país que criou o Estatuto da Criança e do Adolescente, considerado uma das leis mais avançadas do mundo no que se refere à proteção dos direitos da infância e da adolescência? De que forma o Estado, os meios de comunicação e a sociedade se colocam frente à discussão? Quais são os impasses que impedem o avanço positivo da interface infância/comunicação?
No início do mês de março deste ano, a ANDI – Comunicação e Direitos, organização da sociedade civil, realizou, em Brasília, o Seminário Internacional Infância e Comunicação: Direitos, Democracia e Desenvolvimento. Reunindo especialistas nacionais e internacionais, o encontro trouxe informações e estudos que ajudam a responder tais perguntas. E mais do que isso: mostrou experiências que podem servir de modelo para que o Brasil construa o seu próprio caminho, de forma contundente e consequente.
Em entrevista à revistapontocom, Veet Vivarta, secretário executivo da ANDI, avalia o contexto em que se encontra a discussão entre infância e comunicação no país. Aponta quais são os obstáculos. Questiona a atuação do Estado e das empresas de comunicação e analisa o papel desempenhado pela sociedade neste cenário.
Acompanhe:
revistapontocom – Na interface infância e comunicação, qual é a defesa da ANDI?
Veet Vivarta – A ANDI reconhece a importância que os meios de comunicação têm no processo de socialização de crianças e adolescentes. Refiro-me a todos os meios de comunicação, daqueles mais recentes, baseados numa linguagem transmídia, até os mais antigos, que ainda têm uma grande presença na realidade brasileira. A influência destes meios de comunicação – que gera aspectos positivos e também inadequados, comprometendo muitas vezes o desenvolvimento integral das crianças – exige uma reflexão da sociedade. Defendemos uma aproximação entre os direitos das crianças e dos adolescentes, os estatutos e legislações nacionais e internacionais e o universo da mídia, trazendo e promovendo uma convergência em benefício das crianças.
revistapontocom – Quais são os obstáculos para que haja, de fato, esta aproximação?
Veet Vivarta – Uma série de democracias vem avançando na construção desta aproximação por meio do estabelecimento de mecanismos legais e de instrumentos de referência para a organização do setor e para a instrumentalização de políticas públicas na área. Mas no Brasil nem os princípios básicos estão estabelecidos. Poderíamos utilizar o referencial internacional que já existe e está à nossa disposição. Por aqui, o que vem sendo seguido e colocado em prática, na maior parte das vezes, é fruto do desenho dos movimentos do mercado, que nem sempre coincide com os interesses das crianças e dos adolescentes. Não podemos aceitar que as regras do jogo sejam estabelecidas apenas pelo mercado. Cabe ao Estado, à sociedade e aos diversos setores interessados no tema discutir e debater, estruturando o alicerce do relacionamento entre a criança e a comunicação. No entanto, o tema da comunicação no país muito pouco avança frente ao que já avançamos em relação aos direitos da infância. Na época da Assembleia Constituinte, por exemplo, houve uma grande mobilização da sociedade civil em torno da redação e aprovação do Artigo 227 da Constituição Federal, estabelecendo a criança e o adolescente como prioridades absolutas para família, para o Estado e a sociedade. Tempo depois, foi aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que regulou, deu concretude ao Artigo 227. A Constituição garantiu o princípio de ordenamento e, em seguida, foi preciso uma legislação específica para trazê-lo para a prática de forma ampla. Isto não aconteceu com os artigos da Constituição que tratam especificamente da comunicação no país [artigos 220 ao 224]. Até hoje não temos uma legislação que dê conta de organizar o cenário que está estabelecido pela Carta Magna. A comunicação está muito bem conceituada na Constituição como bem e serviço público. Mas não avançamos na prática. Pergunto: por que até hoje o Congresso Nacional não conseguiu ter o mínimo de eficiência para se movimentar e dar uma reposta à Constituição nestes artigos. Conseguimos com os direitos das crianças e adolescentes, mas não no campo da comunicação. Certamente a resposta está nos interesses envolvidos neste processo.
revistapontocom – O senhor se refere aos interesses políticos e das empresas de comunicação?
Veet Vivarta – Certamente. Uma abordagem democrática no campo da comunicação para o Brasil significa rever e modernizar o contexto vigente, que encontra atores que se beneficiam de um cenário mal regulado. Um cenário que acaba de ser retratado na publicação Brasil, o país dos trinta Berlusconi, lançada em janeiro deste ano, pela ONG Repórteres Sem Fronteira. Ao revelar que dez principais grupos econômicos, de origem familiar, continuam repartindo o mercado da comunicação no Brasil, fica claro que a mistura de grupos políticos partidários e de comunicação no controle desse campo tão estratégico compromete não só a qualidade de uma comunicação que, por definição, deveria ser democrática e independente, como também vulnerabiliza a própria democracia brasileira. Os interesses de grupos de comunicação que estão vinculados a representantes do Executivo e a parlamentares, nas três esferas de governo, que foram eleitos pela população e que deveriam, portanto, manter independência para legislar em nome do bem público, comprometem qualquer tentativa de redefinir o cenário. Estamos numa situação trágica, rodando em círculos. Até mesmo boas ações pontuais que chegam ao Congresso Nacional, mas quase sempre acabam sendo engavetadas. Não tramitam, pois acabam tocando nos interesses já estabelecidos pelos políticos e grupos de comunicação.
revistapontocom – A quem caberia reivindicar e exigir tais mudanças? Caberia à sociedade?
Veet Vivarta – Você tocou na questão. Esta resposta vale um bilhão. Sem dúvida, é determinante que a sociedade se mobilize em torno desta agenda. Nos países em que este tema avançou, a sociedade civil teve e cumpriu um papel importante. Por outro lado, a sociedade sozinha não resolve. Em vários países, é o conteúdo/enfrentamento técnico que contribui para o avanço do debate. E, neste sentido, não precisamos inventar a roda. Organismos internacionais, por exemplo a Unesco, vêm produzindo um trabalho muito importante nesta área, trazendo consultores e documentos para compartilhar com especialistas brasileiros com o objetivo de promover um debate que seja pautado por uma questão técnica e não, como costuma acontecer, por afinidades/interesses ideológicos. Debate ideológico que, muitas vezes, é polarizado de tal forma que desvia o foco da discussão – resultado que, talvez, seja mesmo buscado por parte desses atores. Essa polarização é bastante comum no Brasil. Acompanhamos muitas vezes a acusação, por parte do mercado, de que o governo pretende instituir a censura. Outras, temos representantes do governo ou dos partidos da base aliada afirmando que a regulamentação da mídia é a única forma de combater o que não gostam/aprovam nos meios de comunicação. Este tipo de discussão polarizada nos debates da comunicação envieza e desvia o debate. Debate que poderia organizar a discussão e encaminhar soluções para a interface entre comunicação e sociedade, entre comunicação e infância. É preciso organizar o debate por princípios técnicos e esclarecer os conceitos que estão na mesa, enfatizando os déficits que temos em relação a este tema. Déficits que comprometem a democracia.
revistapontocom – O Estado então tem um papel decisivo?
Veet Vivarta – O Governo não pode se eximir de participar desta discussão, assim como as empresas. Temos visto sinais muito ambíguos. Uma vez se anuncia a disposição no avanço, como o Governo Lula fez ao convocar a Conferência Nacional de Comunicação, a Confecom, em 2009. Em outro momento, grupos empresariais anunciam iniciativas de autorregulamentação em seu campo de atuação. Mas isso tudo não avança. Essa preocupação não pode ser creditada a um grupo político partidário específico. Não é possível dizer que o PT é o único partido, a única tonalidade política no Brasil, a se preocupar com o assunto da comunicação. Se formos olhar o Governo do Fernando Henrique Cardoso (PSDB), vamos reconhecer que o ex-ministro das comunicações, Sérgio Motta, chegou a desenvolver uma matriz de um projeto de regulação dos meios de comunicação altamente madura. No ano passado, o próprio Instituto Fernando Henrique Cardoso promoveu um debate sobre estas questões e publicou um livro sobre mídia e democracia. Não dá para acreditar, portanto, como fazem alguns críticos, que as duas maiores forças políticas do país, no sentido que estiveram ocupando os postos de comando em Brasília, estão interessadas em dar um golpe na mídia, com o objetivo de trazer a censura de volta. Diante da grave realidade brasileira neste campo, estas são preocupações, ou deveriam ser, de qualquer governante comprometido com a modernização e democratização do país.
revistapontocom – O senhor falou da importância da sociedade neste processo. Mas será que a sociedade percebe este cenário ‘dominador’ dos políticos e das empresas de comunicação?
Veet Vivarta – Primeiramente, é bom destacar que não partilho do princípio que a mídia brasileira é ruim. Temos um cenário que é bastante diversificado. Na média geral, temos, tanto na mídia impressa quanto na eletrônica, bons conteúdos, sejam de entretenimento ou jornalístico. Não é um cenário perfeito, mas encontro, em relação aos nossos países vizinhos, uma produção interessante. Não acho que a população deva ter uma visão negativa da mídia, mas é preciso, sim, uma visão crítica. E neste sentido concordo que essa visão crítica não está disseminada. Mas há avanços. Lembro-me do debate em torno da Classificação Indicativa, entre 2006 e 2007. Na época, o Datafolha fez uma pesquisa que mostrou que os pais reconheciam a importância de um instrumento que organizasse os conteúdos transmitidos pela TV. A sociedade percebeu que não caberia apenas à família. Deveria haver regras para a veiculação dos conteúdos. Hoje, o debate em torno da publicidade voltada para as crianças também vem crescendo e envolvendo cada vez mais a sociedade. Não vejo um cenário definido. Temos grupos mais e outros menos conscientes. Mas, na média, creio que a sociedade está mais atenta ao tema, pensando mais sobre os assuntos. Se isso vai se transformar em um movimento mais ativo, de mudanças nas regras do jogo, não saberia dizer. Mas sinto que há um nível de preocupação ampliado em torno de algumas questões.
revistapontocom – No início de março deste ano, a ANDI promoveu, em Brasília, o Seminário Internacional Infância e Comunicação. Os debates realizados contribuíram de que forma para o debate destas questões?
Veet Vivarta – Em linhas gerais, o seminário mostrou que há muitos grupos preocupados com o tema. O nível de resposta dos convidados de dentro e fora do Brasil foi expressivo. Fiquei surpreso com o interesse e a participação. Imaginávamos que havia uma demanda reprimida em torno destas discussões, mas não esperávamos um retorno tão positivo, uma presença tão comprometida. Percebemos também o quanto a preocupação em torno da infância/comunicação está disseminada em vários países e continentes e o entendimento de que cabe ao Estado o ordenamento deste campo. Um bom exemplo vem do Comitê dos Direitos da Criança da ONU, criado para acompanhar o cumprimento da Convenção sobre os Direitos da Criança, que definiu como tema de debate para 2014 a interface entre a criança e a comunicação. O órgão pretende organizar e elaborar recomendações aos Estados no sentido de proteger e promover os direitos das crianças no setor da comunicação. Ou seja: é uma preocupação que vem crescendo, no âmbito da qual também se reconhecem a importância de uma postura pró-ativa por parte dosetor privado quanto a iniciativas de autorregulação, da presença e participação da sociedade civil e da construção de uma abordagem técnica para essas questões. Creio que o evento também conseguiu reunir a academia, os órgãos multilaterais e a sociedade civil. Mas embora estivessem representados, o Governo e as empresas não estavam presentes da forma como a ANDI considera ser a mais adequada. O Ministério das Comunicações, por exemplo, fez falta. É difícil compreender que um evento que foca em temas tão fortemente vinculados à pasta não contou com uma representação à altura do debate. O mesmo pode ser dito dos grandes grupos de mídia. Foi uma oportunidade desperdiçada que poderia ter promovido um diálogo ainda maior, amplo e diversificado. Entretanto, não é a primeira vez que isso acontece: quando se propõe um debate que necessariamente irá tocar em aspectos relacionados à regulação dos meios, geralmente o resultado é parecido. Parece que o simples sentar à mesa gera incômodos, o que não me parece ser nada saudável para a democracia brasileira.
revistapontocom – Neste sentido, a infância não é vista como prioridade absoluta?
Veet Vivarta – A infância não é vista como prioridade no Brasil. Falo por mim e pelos depoimentos, estudos e conceitos que foram emitidos no seminário. Para Frank William La Rue, relator das Nações Unidas para a Liberdade de Opinião e Expressão, presente ao encontro, não há como garantir liberdade de expressão, na contemporaneidade, se você somente privilegia os interesses comerciais. Não é possível organizar um ecossistema midiático pautado por princípios democráticos tomando em consideração apenas os interesses das empresas. Eles devem ser contemplados. Mas se passam a dominar os demais, temos aí um grave comprometimento.
revistapontocom – Objetivamente, o que falta para criar uma interface saudável entre a infância e a comunicação no Brasil?
Veet Vivarta – Não acho que a resposta seja tão simples. Existem alguns princípios básicos já estabelecidos por organismos internacionais, como a Unesco e o Unicef. Também temos as experiências de alguns países que fizeram este debate há 20 anos e avançaram. Para que as empresas, sociedade e governo possam começar a garantir de forma concreta os direitos da infância frente aos meios de comunicação no Brasil, o primeiro passo seria sentar à mesma mesa para discutir o marco regulatório da relação entre infância e comunicação. É claro que podemos avançar por partes, mas não é o modelo ideal e saudável. Poderíamos seguir o exemplo do Uruguai. O nosso vizinho convidou formalmente os escritórios da Unesco e do Unicef para mediarem um debate público, envolvendo diversos setores da comunicação e infância, com o objetivo de definir pontos para o desenvolvimento de um projeto de lei na área. Neste caso, a Unesco e o Unicef agiram como um articulador, um mediador, trazendo as experiências internacionais, sem fazer valer a polarização do debate ou o interesse de um ou de outro grupo envolvido no tema. O país conseguiu chegar a uma proposta inicial que já foi entregue ao presidente. Não é uma proposta perfeita, mas chegou-se a um consenso. Entre eles, podemos destacar: a proteção contra conteúdos audiovisuais que possam ser danosos para as crianças e o incentivo à produção de conteúdos que contribuam para o desenvolvimento saudável das crianças, por meio de novas formas de financiamento da produção audiovisual.
revistapontocom – O cenário brasileiro frente à infância/comunicação é animador?
Veet Vivarta – O cenário não é animador no sentido de resultados concretos. Ainda estamos longe de avançar na reorganização do nosso ecossistema midiático, mas é animador no sentido de ver que diferentes setores estão entendendo que se trata de uma questão crucial. Quais são as respostas que vamos dar? Não sei. É um desafio de grande proporção. Há exemplos inspiradores, como o do Uruguai e, mais recentemente, do México, cujo novo presidente surpreendeu a sociedade ao enviar ao parlamento nacional um projeto com características bastante maduras, que visam enfrentar a concentração de propriedade no campo da comunicação e da telecomunicação.
Acesse aqui os conteúdos apresentados por alguns painelistas durante o Seminário Infância e Comunicação
Excelente reflexão. Traça um panorama objetivo, representativo e didático sobre a temática – mesmo para os que acompanham o assunto de perto, como eu.