Por Marcus Tavares
Quem é que nunca deu uma boa gargalhada ao ler as tiras cômicas da Mafalda, Charlie Brown ou do Calvin? Famosas em todo o mundo, essas tirinhas de humor, chamadas de Kid strips, trazem como característica e tema central a criança e o seu universo. O assunto é objeto de estudo do professor da rede estadual de ensino de São Paulo, Márcio Antônio Gatti. Doutorando em Linguística pela Unicamp, Gatti vem mapeando como se dá a representação das crianças nas kid strips.
“Trata-se de um estudo ainda em andamento, portanto as conclusões são preliminares. Mas já é possível dizer que as crianças são constituídas, nas tiras cômicas, de modo heterogêneo, que essa constituição contribui sensivelmente para o efeito de humor da tira, seja simplesmente pelo fato de mobilizar um estereótipo e trabalhar com os dissabores que podem surgir daí, seja pelo fato de a criança ser estereotipada e possibilitar com essa estereotipia o seu uso como um veículo de discursos velados”, destaca.
Em entrevista à revistapontocom, o professor analisa a produção e quais são os possíveis impactos que as tiras exercem nos leitores.
Acompanhe:
revistapontocom – Qual é a representação da criança nas tiras cômicas analisadas pelo senhor?
Márcio Antônio Gatti – Primeiramente é necessário compreender que a criança, no humor, assim como outros grupos sociais, categorias de indivíduos ou etnias (como o bêbado, o caipira, o judeu, o português…), é estereotipada. Isso quer dizer que circulam imagens já, de alguma maneira, cristalizadas, não só no humor como em outros domínios também. A suposta “burrice” da loira ou do português, muito presente nas piadas e em outros textos humorísticos, aponta para imagens pré-concebidas que podem ter ancoragem no modo como a própria sociedade (ou uma parte dela) percebe uma categoria de indivíduos, embora tais estereótipos se materializem mais explicitamente no humor. No caso da criança, portanto, as imagens que circulam pelo humor são potencializações dessas imagens e ideias que estão também em outros campos do saber humano. O que é diferente quando falamos de estereótipos de criança que circulam no humor é justamente uma certa complexidade que não é tão facilmente visível em estereótipos de outros grupos sociais. Assim, a criança pode ser malvada, indolente (os meninos na escola, por exemplo), pouco propensa à higiene, imaginativa. Porém há uma imagem que perpassa, de algum modo, vários desses textos humorísticos: a da criança como um ser incompleto, e essa incompletude pode facilmente ser associada aos outros estereótipos de criança que se veiculam nas tiras.
revistapontocom – Essa representação da criança surge de que contexto? E o que ela provoca?
Márcio Antônio Gatti – As tiras cômicas são textos humorísticos. Devem ser, portanto, encaradas como tais. Veicular imagens como essas tem, obviamente, um objetivo básico, que é o de provocar o riso no leitor. Agora, por que rimos dessas imagens, por que essas imagens surgem e não outras são perguntas que podem ter respostas de diversos outros fatores. Dizer, simplesmente, que a criança é incompleta, ou que, a partir disso, vive num mundo de imaginação, pode não ter nenhuma graça. Mas colocá-la numa narrativa curta (como a das tiras ou das piadas) em que essa imaginação sofre alguma ruptura, ou que, por conta dela, haja alguma confusão, pode provocar o riso. Tem a ver com as técnicas, também, que estão associadas aos próprios gêneros típicos do humor. Rimos do inesperado, do inusitado. E isso está ligado ao reconhecimento dos estereótipos pelo leitor. No caso das tiras cômicas com crianças, acredito que o riso está ligado não só ao fato de percebermos um estereótipo num gênero que seja tipicamente do humor, mas também a um não reconhecimento de si naquele discurso. O adulto ri daquilo porque percebe uma ingenuidade que não é mais dele, que não pertence a ele, que é do outro. Ou ainda quando percebe que a criança estereotipada da tira faz coisas, diz coisas que ele próprio não pode fazer ou dizer, porque a ele se proíbem certas coisas (como numa ditadura falar mal da conjuntura política ou falar de temas tabus ou ser grosseiro com as pessoas…). Quanto ao surgimento dessas representações, ele pode ter origem no próprio modo como se constituiu a ideia de infância. Ocorre que para a civilização como a conhecemos, é inconcebível que adultos e crianças tenham o mesmo tipo de comportamento, sejam da mesma “categoria”. Por outro lado, embora tenhamos separado paulatinamente o mundo adulto do mundo infantil, continuamos, por exemplo, a explorar as crianças quando julgamos necessário (no trabalho, na guerra…). Há, pois, uma maneira complexa de se conceber a infância: como toda categoria humana ela não é natural e simples. Vista dessa forma, a infância, como um objeto histórico, provoca diversas interpretações, diversos tipos de indagações, suscita uma série de debates, pesquisas. Além do mais, ela é sempre discursivizada pelo outro, pelo adulto, que a interpreta e, de acordo com suas convicções, seus objetivos, sua ideologia, produz uma imagem de criança, que não necessariamente é aquela que a criança produziria. Em suma, a criança por não ser agente do discurso sobre ela própria, permite que se façam interpretações sobre si diversas, que se produzam diversos estereótipos, pois não reivindica uma imagem “correta”. Enfim, acredito que seja precipitado afirmar que um estereótipo seja um retrato da realidade, esteja calcado na realidade. Há, obviamente, traços estereotípicos que são facilmente associados às crianças reais, como a imaginação, por exemplo, mas há outros, como a sagacidade, que não. Mas isso não quer dizer que as crianças não sejam sagazes, pode ser que sejam de outras formas, diferentes do padrão adulto.
revistapontocom – Essa representação da infância é a visão (velada ou não) que os adultos/a sociedade têm das crianças?
Márcio Antônio Gatti – De fato, não me preocupei muito com isso, porque não sei se podemos colar prontamente uma representação estereotípica a uma visão social sobre um grupo, uma categoria de indivíduos. Seria como dizer que a criança é assim nas tiras porque a sociedade a vê dessa forma. Não sei se é só isso. Creio que não. A infância é um período da vida que é complexo e que permite uma série de imagens estereotipadas. Mas é verdade, também, que há uma ideia mais ou menos predominante de que a criança é um ser em desenvolvimento, que necessitaria de cuidado, de educação escolar etc. O que, obviamente, é absolutamente correto, para a nossa sociedade. Isso não que dizer que a criança não seja um sujeito, que seja apenas uma massa de modelar, um corpo vazio, que não tem protagonismo porque é um indivíduo em desenvolvimento. Essa incompletude típica da infância é que pode ser aproveitada (e efetivamente é, em muitos textos) pelo humor. Porque ele precisa de certas condições para ser o que é. No sentido dessa imagem predominante do ser incompleto, o humor faz com que a criança, justamente por isso, possa dizer as coisas que diz, porque não teria responsabilidade sobre o seu dizer.
revistapontocom – Num mundo em que se defende cada vez mais os direitos das crianças, essas tiras não seriam rotuladas de politicamente incorretas?
Márcio Antônio Gatti – Não vejo dessa forma, não me parece que essas tiras sejam politicamente incorretas. Talvez algumas piadas que tenham como protagonistas crianças sejam exemplos mais próximos do politicamente incorreto. Mas essas tiras com as quais venho trabalhando, acredito que não são. Podemos perceber, por exemplo, que nessa busca pelo riso, o discurso das tiras constitui crianças ingênuas, mas sagazes ao mesmo tempo, que lidam com categorias do mundo adulto com alguma incorreção, mas que sabem muito bem de outras coisas. Um exemplo emblemático disso é uma tira em que o irmão de Mafalda, Guile, depois de saber por sua irmã que o dia estava nublado e que, portanto, não haveria sol, diz “palece mentila, um seviço público”. É um modo de constituir a identidade da criança que tanto se aproxima da imagem da ingenuidade, quanto se distancia dela, não coincide com ela. Porque não saber que o sol não é um serviço público estaria ligado à ingenuidade, mas “resmungar” de um serviço público que falharia, permite-nos inferir que ele sabe que os serviços públicos falham e não deveriam. O que não pode estar relacionado com o estereótipo da ingenuidade. Riríamos dessa mistura de imagens, não especificamente de um rebaixamento da criança. Desse modo, acredito que a sobrevida desse material está garantida, pelo menos por algum tempo, porque não há jamais unanimidade sobre qualquer categoria humana. Onde há controvérsia, pode haver humor.
revistapontocom – Essas tiras, em sua grande maioria, são produções estrangeiras, não? Por que fazem tanto sucesso no nosso país?
Márcio Antônio Gatti – Acredito que seja meio banal recorrer ao mundo globalizado para explicar isso. Mas isso tem um pouco de verdade. A civilização que consome esse tipo de quadrinho é semelhante em muitos aspectos, não dá para separar países, nesse caso, porque a infância, para essa civilização, é um “fato” universal. Por isso, talvez, façam tanto sucesso por aqui. No Brasil, não conheço materiais que tenham se constituído como as grandes séries de tiras estrangeiras (Peanuts, Mafalda, Calvin e Haroldo). Há, é verdade, a Turma da Mônica que também pode se constituir num excelente material de análise. Mas não tenho me dedicado a ela por alguns motivos, principalmente pelo público que seleciona e pela sua relação menos direta com o humor. Como pesquiso humor, recortei um universo de textos que são tipicamente gêneros do campo humorístico, voltados mais claramente para um público adulto (o que não quer dizer que a Turma da Mônica não seja uma material interessante, muito longe disso!). Por aqui há exemplos mais modestos de tiras com personagens infantis, como aquelas produzidas por Angeli, que têm como protagonista o garoto Ozzy e que foram produzidas na década de 1990. Uma outra forma de explicar o sucesso dessa tiras é que o humor trata de certos temas que têm algum aspecto controverso. Nesse caso, a infância (ou os estereótipo disponíveis sobre ela) facilita a mobilização desses temas. A criança é um dos veículos que permitem tratar desses temas.
revistapontocom – O senhor não concorda que de uns tempos para cá crescem também tiras que enaltecem as crianças e colocam os adultos em posição inferior? Principalmente quando o assunto é tecnologia, como se as crianças fossem mais espertas e rápidas?
Márcio Antônio Gatti – Os textos em geral têm cada vez mais tomado a informática, a tecnologia como tema. Não me lembro agora de ter visto alguma tira em que esse tema esteja presente. Mas concordo que não há nenhum absurdo em fazer humor com isso. É inclusive, creio, parte do mesmo processo: constituir a criança como aquele que sabe mais do que parece que saiba. Lembro, por exemplo, de uma propaganda de um banco que um menino de cerca de cinco anos é que resolvia os problemas de informática da casa, era o técnico da casa. Tem a ver, também, acredito, em associar a informática às novas gerações. Dizer que elas dominariam com mais facilidade que as antigas. Isso de rebaixar o adulto também está presente nas tiras mais antigas, Mafalda é um exemplo clássico, quando a protagonista detecta, em várias tiras, a submissão de sua mãe, é também uma espécie de rebaixamento do adulto, não só da categoria adulto, mas das relações que se estabelecem nessa categoria. Em Calvin e Haroldo, também há uma espécie de rebaixamento do mundo adulto, principalmente de sua rigidez.
revistapontocom – O que levou o senhor a fazer esta pesquisa? Qual foi a conclusão do estudo?
Márcio Antônio Gatti – Trata-se de um estudo ainda em andamento, portanto as conclusões são preliminares. Mas já é possível dizer que as crianças são constituídas, nas tiras cômicas, de modo heterogêneo, que essa constituição contribui sensivelmente para o efeito de humor da tira, seja simplesmente pelo fato de mobilizar um estereótipo e trabalhar com os dissabores que podem surgir daí, seja pelo fato de a criança ser estereotipada e possibilitar com essa estereotipia o seu uso como um veículo de discursos velados. Dá para perceber que o estudo do estereótipo é, basicamente, o que vem se constituindo como um eixo de minha pesquisa. Nesse sentido, também trabalho para constituir um modo mais apropriado de tratar o estereótipo nos estudos discursivos. Desse modo, venho me dedicando também a sua teorização. O trabalho com o estereótipo, de alguma forma, também foi o que me levou a desenvolver essa pesquisa. É perceptível em diversos textos humorísticos que eles são elementos importantes na constituição dos efeitos de sentido que ali são constituídos. Mas há um jogo muito claro de depreciação ou de enaltecimento de algum grupo. No caso das crianças isso não ocorre de forma tão clara. Estudar esse processo de estereotipagem, de alguma maneira, contribui para perceber o funcionamento de certos domínios discursivos, como o humor. Além disso, como a criança é uma categoria muito estudada, observar os discursos sobre ela e seus funcionamentos (o que não deixa de ser outra motivação para o trabalho) é sempre importante para a sociedade e para outros estudos que venham a ser constituídos sobre a infância e a criança.