Guia materno: infância saudável e disciplinada

Tese de doutorado analisa os guias maternos da primeira metade do século XX. Radiografia da infância daquela época.

 

  

Por Maria Alice da Cruz

Ao receber o resultado positivo do Beta HCG – exame de gravidez -, as primeiras indicações de literatura que a mulher recebe são aquelas dedicadas a cuidados com os filhos. Essa literatura, destinada ao público feminino, pode ser ainda resquício de antigas publicações encontradas e adquiridas pela pesquisadora Maria das Graças Sandi Magalhães durante sua peregrinação por sebos: os guias maternos. Alguns exemplares produzidos na primeira metade do século 20 – entre 1919 e 1957 -, analisados em sua tese de doutorado, permitiram refletir sobre as possibilidades que se abriram a partir da publicação de tais impressos, como o conjunto de leituras propostos para as mulheres à época. Segundo Maria das Graças, ao mesmo tempo em que os textos, alguns com comentários em destaque, pretendiam nortear as atividades diárias das mães com suas crianças, acabaram estimulando a iniciativa feminina para lidar com as demandas cotidianas.

Maria das Graças inicia o trabalho mostrando que os guias tinham um lugar importante em relação ao mercado editorial em expansão naquela época. Escritos com o intuito de disseminar prescrições médicas, as publicações brasileiras compuseram um conjunto de leituras consideradas como úteis à educação da população. Os impressos foram compreendidos como uma das estratégias de consolidação de um projeto médico-pedagógico, voltado para a educação das mulheres, em relação à inserção de práticas recomendadas pela pediatria, no âmbito doméstico.

Ela enfatiza que os impressos tinham grande circulação entre o público feminino e funcionavam como um verdadeiro manual, acompanhado de índice remissivo. A partir de referenciais teóricos, a pesquisadora investigou a disseminação de um modelo de educação feminina, destinado a modificar as práticas de criação dos filhos, sob a perspectiva médica. O trabalho acaba por complementar outras pesquisas que investigam os guias como um dos mecanismos de controle da educação feminina, além de analisar, sob outras perspectivas, a sujeição das mulheres aos aspectos morais e autoritários, responsáveis pela representação da mulher como a “rainha do lar”.

Para ela, prescrições médicas encontradas nos livros visavam à inserção, no ambiente doméstico, de procedimentos definidos pelos médicos como os mais adequados no combate à mortalidade infantil e que se vinculavam à representação de que uma infância saudável e disciplinada seria a garantia do futuro do país.

Segundo a autora, a análise de coleções que associavam ciência e utilidade, na intenção de defender a educação como uma forma de regeneração nacional, mostrou que a questão da saúde na infância ganhou espaço próprio entre os impressos destinados à educação da população, dialogando com o crescente número de leitoras.

A conversa de comadre perde espaço quando um livro todo bem-escrito e encadernado, com ilustrações sobre procedimentos “científicos” no cuidado com os filhos, começa a ganhar espaço na casa das “mamães”.

No seu Guia das Mãezinhas, o médico Wladimir Toledo Piza escreve sobre essa tradição feminina de compartilhar suas experiências na lida diária com os filhos: “Escolhe entre os conselhos das amigas que, embora com boa intenção, te ensinam o que não sabem, porque não estudaram, e as recomendações dos especialistas que passam a vida tratando de crianças, do hospital para o laboratório, e toma o caminho que tua inteligência te indicar.” Ele acreditava que, para serem bem-sucedidas, as mães deveriam seguir os conselhos médicos. Segundo Maria das Graças, a advertência escrita por Piza é um exemplo de como algumas publicações desqualificavam os conhecimentos e as práticas, em relação aos cuidados, compartilhados entre as mulheres.

As amas de leite, como não poderia deixar de ser, também foram tema dos manuais, mas de maneira depreciativa. O discurso pela amamentação dos próprios filhos cresce dentro de uma iniciativa de combate ao aleitamento mercenário, na introdução de práticas higiênicas próximas aos procedimentos hospitalares. Alguns autores, segundo Maria das Graças, insinuavam que se fossem amamentadas por uma pessoa de condição social “inferior”, as crianças teriam os mesmos hábitos dessa pessoa.

De acordo com Maria das Graças, a forma como a criança era representada nos guias – frágeis, espiritualmente maleáveis – abriu precedente para que os médicos passassem a ser considerados a principal autoridade no que se refere à saúde e à educação das crianças. Eles sugeriam que somente com uma vida regrada as crianças poderiam atingir alguns parâmetros de saúde como robustez, disciplina e docilidade, de acordo com os princípios da higiene.

Fonte – Jornal da Unicamp

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